O Mercado de Kashgar

Este relato é parte de uma viagem à Ásia Central que começa aqui.

The Silence of the Lambs

  • Anwar decidiu ir primeiro ao mercado de animais. Ele estava um pouco de mau humor e tivemos de convencê-lo a não esperar no carro e vir conosco. Depois entendemos porque.
  • A feira funcionava ali há 6 anos, uma área murada do tamanho de um campo de futebol. O chão é uma mistura de cascalho, bosta seca e restos de capim da comida dos animais. Ovelhas de bunda gorda, peludas ou tosadas, jegues, camelos, cavalos, bois, muito pó, homens sujos vestidos com roupas muito similares se confundiam com turistas de roupas coloridas de tecidos de alta performance, câmeras pesadíssimas e cara limpa.
  • Animais amarrados tentavam copular exasperadamente e molhavam o chão.
  • A sonoplastia vinha do mugido das vacas, do berro das ovelhas, dos urros dos jegues. Mas a tudo isso se sobrepunha as discussões acaloradas das negociações dos uyghur, que pareciam que iam sair no tapa, mas terminavam apertando as mãos sorridentes.
  • Na saída, uma ovelha jazia morta com o pescoço cortado e o sangue derramado no chão. Um rapaz muito eficiente fez um buraco em sua perna traseira e soprava para a pele desgrudar. Quando se afastava para tomar fôlego, tinha sangue ao redor da boca. Depois começou a fazer incisões em locais precisos e remover a pele cirurgicamente, tudo diretamente sobre o chão da rua. Essa é a origem da carne e não o bem de consumo que supermercados vendem em embalagens a vácuo. Muitas pessoas parariam de comer carne se vissem essa cena dantesca com mais freqüência.

Negócio da China

  • De lá fomos ao mercadão de fato. Imagine o Mercado Municipal de São Paulo, mais a rua José Paulino com suas lojas de tecidos, as lojas de roupas feias do Brás, algumas partes da Sta Efigênia e seus componentes eletrônicos, mais dezenas de camelôs de sapatos de todos os tipos inclusive usados, mais vendas de vestidos de festa, ternos, sedas, cashmere, artesanato, especiarias, higiene pessoal, louça, lataria, frutas e legumes. Esse é o mercado de Kashgar.
  • Não há compra sem pechincha porque o preço é feito de acordo com a cara do freguês. Nunca está escrito sobre o produto e o preço final pode ser menos de 50% do primeiro preço. Esses caras inventaram a lei da oferta e da procura.
  • Em certos lugares havia tanta gente, e-bikes, motos e carga passando que tínhamos que nos segurar para não nos perdermos um do outro. Mesmo assim não fazíamos a menor ideia de onde estávamos e foi um barato.
  • Umas 14h encontramos o Anwar no lugar combinado e ele nos ajudou a comprar chá de especiarias. Mas o homem moeu demais e virou um pó que deixou a Tati chateada. Moer assim é coisa de quem faz temperos e não chá. De qualquer forma, o saco fechado deixava um perfumado aroma de cardamomo e cravo no quarto do hotel.
  • Do mercado fomos almoçar perto do hotel. Anwar pediu a comida mas esperou na rua. Estava em jejum.
  • Depois fomos ao hotel, dormimos até umas 17h e fomos bater perna na avenida de lojas chinesas, a principal da cidade.

Han chinese

  • Numa livraria compramos todos os exemplares do Mister O e Mister I, quadrinhos simpáticos sem palavras.
  • Entramos em shoppings, galerias, vimos restaurantes han-chineses autênticos, compramos roupa sem falar 1 palavra de Chines. Uma calculadora pode ser um ótimo mecanismo de comunicação. Finalmente conhecemos a China chinesa.
  • Na saída de uma grande galeria, já escuro, casais dançavam como em dança de salão ao ar livre. Não entendemos se era uma aula ou se estavam se divertindo. De qualquer forma entramos e gastamos os passos que tínhamos aprendido nas aulas no Brasil.
  • Um senhor escrevia no chão aquela caligrafia bonita com agua e um pincelzão molhado. As frases saiam na vertical. Outro homem andou nervoso sobre a caligrafia, gritando com o escritor a ponto de espanta-lo para outro lugar na praça, sem dizer uma palavra. E continuou a escrever.
  • Voltamos ao hotel para encontrar Anwar que atrasou meia hora. Ele apareceu com sua e-bike e nos deixou dar uma volta. Eu quero uma e-bike: completamente silenciosa, forte o suficiente mas com pouco torque, confortável e fácil de usar. A bateria tem autonomia de uns 100km e passa a noite recarregando numa tomada simples. Custa uns 3000 yuan e todos tem uma porque o governo proibiu o uso de motocicletas de combustão no centro das cidades por serem perigosas e barulhentas. Seria uma ótima solução para cidades como São Paulo, se tivéssemos mais faixas para bicicletas.
  • Nos levou a um restaurante muito elegante que um holandês no hotel disse que parecia caro mas é barato. Anwar pediu uma sopa de carne com legumes para a Tati e um arroz branco com legumes para mim, além de um preparado quente de berinjelinhas com molho de tomate bem apimentado. Estava tudo ótimo.
  • Aquilo era considerado um restaurante fast food apesar de não parecer. Na verdade todos que fomos eram assim, e a comida de fato chegava rapidamente. Restaurantes normais servem banquetes para varias pessoas, e a conta sairia uns 200 yuan. Mas nestes não chegava a 70 yuan.
  • Conversamos sobre coisas leves, línguas, a sociedade Uyghur, vícios, vida noturna, e um imaginário “Uyghuristan”. Anwar disse que uyghur são muito ciumentos e tem dificuldade de trabalhar em equipe pois brigam entre si, mas ao mesmo tempo todos churingas tem talentos. Estávamos todos felizes e foi agradável.

Internet subversiva

  • Precisávamos descarregar a câmera e havia uma enorme LAN house ao lado. Na bagunça da fila para se registrar, Anwar disse que esta era “muito chinesa” e havia outra perto dali mais uyghur, com cabines privativas e menos fumantes. Por causa do excesso de fumaça acabamos seguindo ele.
  • Por 2 yuan por hora recebemos ótimos computadores com Internet muito rápida. Era um lugar com muitos salões grandes e poltronas confortáveis. Deviam haver mais de 100 máquinas ali.
  • Ao plugar o iPod para receber os arquivos, dava tela azul sempre. Tive que usar o PC do administrador no quarto de dormir dele, onde havia espaço exato só para mais a cama.
  • Estava tudo em chinês e operamos os PCs baseado na lembrança da posição dos ícones e opções dos menus. Se fosse Linux, como isso muda em cada distribuição, provavelmente estaríamos completamente perdidos e não iríamos conseguir usar nada.
  • Não havia nenhum software de VoIP e nem tentei instalar porque percebi que o PC era todo protegido e de uso restrito. Não havia MSN Messenger instalado e no lugar usavam um tal de QQ. Depois reparei que isso era comum em outros lugares. Vi muitos ícones do KDE no desktop. Selecionei o do Konqueror mas abriu um programa que não conhecia.
  • Acessar a Internet tem uma burocracia considerável na China. Todo mundo tem que apresentar documento, ser registrado e se fizer algo subversivo tem que prestar contas para a rapaziada do Mao. Após apresentar os passaportes, nos deram um usuário e senha. A máquina deslogava após 1 hora de uso.
  • Pessoas iam lá principalmente para jogar, para surfar um pouco na Internet ou para assistir filmes e seriados. Isso mesmo: uma pagina interna indexava filmes e episódios de seriados já baixados disponíveis em seus servidores. Um clique no browser abria o player e a sessão começava. Só descobri isso porque foi o que Anwar fez (e me mostrou) enquanto usávamos o ciberespaço. Ele na verdade só vinha para LAN houses para isso. Nem e-mail tinha e acabei criando um GMail para ele.
  • Chegamos no hotel 1h da manha, tomamos banho e chapamos imediatamente.

2 thoughts on “O Mercado de Kashgar”

  1. Quem afirma que, ao conhecer Kashgar, conheceu a “china chinesa” não conhece a China!

    Kashgar é um oasis habitado pela etnia Uigur! Possui características singulares que nada tem a ver com a cultura “han”, que tenta de todas as forma se sobrepor aos nativos!

    Felizmente os Uigures têm resistido.

    De modo algum afirmo que a cultura “han” não é rica. Ao contrário, possui peculiaridades que merecem o respeito de qualquer outra cultura. Respeito este, que deveriam (os han) possuir por outras minorias, como os Uigur.

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