Confesso que quando minha namorada me propos essa viagem tive a mesma reação do pessoal da Band News. No roteiro adicionamos o Quirguiztão e Kashgar também.
Então vamos ajudar o pessoal da Band News a encontrar o Uzbequistão no planeta: aos olhos do pessoal da Band News (e para mim também, até antes de 2007), Uzbequistão está para a Russia assim como o Piauí está para o Brasil visto pelos olhos dos uzbeques. Mas diferente do Piauí que é um estado brasileiro, o Uzbequistão é um país que outrora fazia parte da União Soviética. O que eu quero dizer é que o Uzbequistão é tão fim do mundo para os brasileiros (ainda) quanto o Piauí é fim de mundo para os uzbeques.
Nada contra o Piauí. Lá é bem legal também, devidamente visitado e apreciado.
E se ainda tiverem dúvidas sobre o pequeno tamanho desse mundo, deixo vocês com a genial poesia do Gilberto Gil:
Antes mundo era pequeno
Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
Do tamanho da antena
Parabolicamará
Tatiana e eu fizemos uma viagem absolutamente incrível para o outro lado planeta — a Ásia Central — região que muitas pessoas mal sabem que existe.
Fizemos anotações detalhadas, dia após dia, sobre todos os lugares que passamos, pessoas que encontramos e impressões que tivemos. Os links abaixo vão te levar às mesquitas do Uzbequistão, montanhas do Kyrgyzstão, ao caldeirão social da China, e a exuberância de Moscow.
Eu recomendo fortemente qualquer pessoa fazer viagens desafiantes. Dificilmente nossa cultura e pontos de vista vão crescer se passarmos 7 dias coçando num resort.
Pode ser qualquer lugar: Amazônia para urbanóides, Islã para ateus, Las Vegas para saudosos marxistas.
Além do gostinho de poder contar que fomos para lugares que muitas pessoas não sabem nem pronunciar o nome, o desafio nos fez pensar muito sobre a história do mundo, o fluxo das etnias humanas, sociedade, economia, comida, fé, religião, e principalmente sobre nós mesmos e o que de fato somos.
Viajar pela Ásia Central não foi nada difícil. As pessoas são amigáveis e bonitas, os hotéis são confortáveis, cidades bem equipadas. E se você não for se meter no Afeganistão ou no Kashmir, a paz reina.
Etnias
O Uzbequistão faz fronteira com o Irã, antiga Pérsia, que definiu o tipo étnico da região há milênios. Mas a região foi também berço de incursões militares gregas de Alexandre o Grande e Genghis Khan. Isso conferiu uma mistura incrível de traços, cores de olhos e línguas.
É comum ver persas claros, loiras de olhos puxados, ou mongois de olhos verdes. E vimos mulheres realmente lindas.
O noroeste da China não é chinês. Pelo menos não no esteriótipo de chinês que as pessoas costumam ter na cabeça. O noroeste da China é tão persa quanto o Uzbequistão.
Já o Kyrgyzstão tem olhos mais puxados do que o noroeste da China. Se te teletransportarem para lá de olhos fechados, vai dizer que está no interior da China.
Línguas
Toda aquela região, inclusive o noroeste da China fala dialetos muito parecidos, todos derivados de língua turca. Uzbeque, Kyrgyz e Uyghur são línguas 95% similares e todos se entendem pela lingua falada.
O problema é ler e escrever. As línguas escritas no Uzbequistão são o russo (alfabeto cirílico) e o uzbeque a décadas escrito em cirílico. Mas recentemente o governo decidiu dar um passo no sentido da modernidade e maior integração com o ocidente adotando alfabeto latino como o oficial para escrever uzbeque.
No Kyrgyzstão eles não ligam muito para relações internacionais, então continuam escrevendo kyrgyz em cirílico mesmo. E na China, o povo Uyghur se orgulha em manter as tradições usando o alfabeto árabe (diferente da língua árabe) para ler e escrever.
Mas isso não tem muito problema porque o Uzbequistão é o maior produtor de videoclipes da região e todo mundo acaba ouvindo música Uzbeque que obtém de DVDs pirateados.
Há ainda inúmeros outros povos na região, que falam dialetos parecidos: os Khorezm, os Kazakhs, Tajiks, etc.
Fé e Religião
Esse foi um dos aspectos mais interessantes da viagem. A região é predominantemente islãmica. É incorreto dizer que são árabes porque estes são os que vivem na Península Arábica, milhares de quilómetros a oeste da Ásia Central.
Mas é um islã leve. Se não visitássemos os lugares históricos talvez nem percebêssemos. No Kyrgyzstão é mais leve ainda. Não há uma conexão muito grande com isso por lá.
Só a China nos surpreendeu. Sim, a China. Foi somente alí que vimos mulheres de rostos cobertos e fanatismo um pouco mais evidente. Isso acontece porque há um preconceito mútuo entre os chineses Uyghurs (predominantes no noroeste do país) e os chineses Han (os de olhos puxados). A conseqüência é que a minoria Uyghur acaba se voltando mais para sí, fomentando tradições e costumes em torno da religião. Ao longo dos séculos, costumes temporais, tradições sociais e leis religiosas se confundem e tudo vira sagrado sem se saber exatamente o motivo.
Coisas que não existem na Ásia Central
Preço estampado em qualquer mercadoria. O preço é feito sempre na hora, conforme a cara do freguês e o humor do vendedor. E sempre há margem para pechincha.
Adoçante dietético. Nenhum restaurante tem, mesmo se pedir.
Coca-Cola Light ou qualquer outro refrigerante dietético.
Folhas tipo alface, rúcula ou agrião. Nem na feira. Quando pedíamos a “Salada Verde” do cardápio de alguns restaurantes, era de coentro, cheiro-verde e dil. Uma salada de temperos verdes.
Saladas sem coentro.
Comida quente sem carne ou sem qualquer gordura animal. “Tem carne nisso aí?”. “Não, só bacon pra dar um sabor”.
Comida sem óleo.
Facas que efetivamente cortam. Todas eram cegas.
Guardanapo limpo sobre a mesa assim que se senta. Sempre tínhamos que pedir.
Guardanapo usado que fica na mesa mais de 3 minutos. Os garçons tinham algum tipo de obsessão em recolhê-los assim que fossem usados ainda que pouco.
Hoteis com cama de casal. Mais raro que mosca branca.
Área ou quarto de hotel para não-fumantes. Em qualquer sala de espera, restaurante, quarto de hotel etc, fumavam sem parar de todos os lados.
Levantamos às 8h, fizemos o grosso da mala e saímos com planos de conhecer o Измайловский парк (Izmaylovsky park), atravessando a rua do hotel
Para um sábado de manhã estava completamente vazio. Esperávamos ver pedestres, esportistas, bicicletas, etc. Mas nada. No máximo havia um ou outro par de amigos tirando fotos ou sentados comendo e bebendo. Em uma das entradas do parque, um carro estava parado com o som bem alto e algumas pessoas dançavam e bebiam em volta. A balada da noite anterior ainda não tinha acabado.
Vimos um lago no mapa, mas não o encontramos. Nem sabemos se fomos exatamente em sua direção. Muitos cachorros viviam no parque, provavelmente abandonados pelos seus donos, e as vezes eles latiam em coro.
Nos perdemos e tivemos que voltar correndo para fechar as malas e nos encontrar com o taxista na hora marcada.
Nem tínhamos tomado café e paramos em um dos terríveis supermercadinhos do outro dia mas dessa vez só levamos iogurte de beber e bolo pronto, para comer enquanto andávamos até o hotel. O bolo ostentava amêndoas na parte de cima, mas na primeira mordida ele nos enganou: era de amendoim.
Passaportsky Problema
Tomamos banho correndo, fechamos as malas, descemos para o check out, e o Victor estava a nos esperar com outro motorista. Pediu desculpas por não estar no aeroporto na chegada, mas não foi culpa dele. E nos deu um envelope com os 1700 rub que tínhamos gasto com o taxi da chegada. Muito nobre da parte dele. Então nos deixou com seu motorista e nos despedimos.
Pedi ao motorista (com muita mímica) que parasse em algum lugar para trocarmos os Rublos que sobraram para dolar e ele deu uma volta considerável para passar no centro. Conseguimos boas taxas, mas talvez não compensou a volta.
Apesar de ser sábado, pegamos muito trânsito inclusive nas highways. Ele se encheu e pegou algumas vias alternativas que andavam melhor. E chegamos no aeroporto sãos, salvos e na hora certa.
As russas que trabalhavam no check in da Air France/Aeroflot não eram de muitas palavras. Aliás eram de bem poucas palavras. Eram mesmo bastante secas. Mas fizeram seu papel e pronto. Despachamos as duas mochilonas diretamente para São Paulo porque a Tati havia deixado uma bolsa com roupas limpas em Paris na escala do começo da viagem, na casa de conhecidos.
Depois do check in você não pode ficar zanzando no aeroporto. Tem que passaportar e entrar direto nas salas de espera. Nesse processo, uma militar com cara de durona liberou a Tati e segurou meu passaporte e cartão de embarque. Não havia muita comunicação. Pediu para eu esperar logo ali, e eu perguntei “what is the problem?” e ela respondeu “problema, problema”. Ai meu Deus.
Depois de esperar alguns bons minutos de pé apontei para o relógio indicando que tinha um vôo para pegar. Veio um oficial fardado com um inglês razoável e disse que meu passaporte teria que passar por uma vistoria dupla. Não entendi se era problema específico com o meu passaporte ou se tinha sido escolhido aleatoriamente.
O oficial também disse que o vôo não pode decolar sem a autorização “deles” e que eu podia ficar tranqüilo. Aquilo não me tranqüilizou muito porque demonstrava muito poder: se eles podiam segurar um avião, podiam muito bem segurar um zé mané como eu também. Então ele sumiu.
Vários outros minutos depois e sem ninguém para falar reclamei com a durona novamente. Ela não estava muito aí e mandou continuar quietinho. A Tati foi comprar vodka de presente no free shop.
Já chamavam o nosso vôo para o embarque e comecei a surtar. “Ô durona, como é que eu fico aqui?” é o que eu queria falar, mas me limitei as mímicas.
O oficial baixinho e loiro e que gostava de dizer que tinham o poder nas mãos reapareceu. Informei-o que já chamavam para embarcar e ele novamente disse que não decolariam sem a ordem deles, mas era para eles não decolarem sem mim. Disse que meu passaporte tinha um problema de rasura no ano de validade. O “8” do “2008” era meio diferente dos outros algarismos. Eu custei a perceber isso. Ele pegou meu passaporte de dentro do guichê da durona para me mostrar. Achei que tinham levado-o para outro lugar para ser analisado, mas não: ele ficou com a durona que não fez checagem dupla nenhuma, pois carimbava outros passaportes da fila.
Eles me devolveram o passaporte e saí com a impressão de que aquilo foi puro terrorismo psicológico sem nenhuma base, e que a data de validade do passaporte podia até estar escrita a mão. Além do mais, havia entrado e saído de uns 4 países sem problemas, inclusive na Rússia, e não era ali, na saída do país, que tinham que encrencar.
Paris, Cidade das Luzes
Pegamos o vôo da Air France a tempo e o nível de simpatia já mudou quando um comissário francês percebeu que éramos do Brasil, disse que gostava muito de nosso país e nos deu um tratamento especial.
Entramos tranqüilamente na França e encontramos o Larbi, amigo da Tati, que veio nos pegar de carro. A Tati ia ficar alguns dias em Paris e o meu vôo era dali a umas 7 horas, o que nos dava tempo para passear mais em Paris.
Chegando na cidade, o trânsito de sábado estava péssimo. Estacionamos e fomos a pé até um bar na beira de uma represa no meio da cidade. Parecia que o Rio Sena começava ali. Mas estava lotado e fomos embora.
De metrô, fomos até Montmartre e de lá a pé até a Basílica de SacréCœur (mapa). As ruas sempre cheias de turistas. Perto da basílica, muitos jovens se amontoavam na escadaria para se assistirem e também a showzinhos de voz e violão amplificados que aconteciam esporadicamente lá. Um pouco mais afastado, um homem tocava violão mais seriamente e soltou um samba sem que pedíssemos. Seu CD, que estava à venda, tinha outros temas brasileiros e também Street Beat do David Hewitt, uma música lindíssima e pouco conhecida.
Quando dizem que Paris é a Cidade das Luzes, saibam que é com bastante propriedade. Ela emana beleza, humanidade, diversidade, cultura e bem estar.
Ao caminhar pelas estreitas e belas ruas de Montmartre sentimos isso. Casas aconchegantes se mesclavam com pequenos parques e chafarizes, onde crianças construíam seus castelos de areia e adultos jogavam bocha. E também placas de sítios históricos, herdades e bustos de cantoras que deixaram saudade. Mais cafés charmosos com mesinhas na calçada.
Paramos num desses para encontrar com outro amigo da Tati, o François, e comer algo. Era um lugar descolado e moderninho com direito a garçom que fazia gracinhas. A certa altura o cozinheiro azulão trouxe um balde para uma das mesas e fez saltar nossos olhos enquanto enchia de chocolate líquido do balde as travessinhas de petit gâteau que seriam assadas em seguida. Ao terminar o importante trabalho, traçou tranqüilamente, sentado no mesmo lugar, um sanduíche de baguete, enquanto conversava com alguns garçons e outras pessoas de pé. Uma cena tão parisiense.
Começou a anoitecer e esfriar e tínhamos que voltar ao carro do Larbi de metrô. Fomos ao apartamento dele, tomou banho enquanto a Tati embrulhava uns presentes e fomos de metrô à festa de aniversário da Clarie, outra amiga da Tati.
Se no metrô de Moscow há só loiros, o de Paris é uma salada étnica. Havia 3 mulheres negras vestidas com turbantes e tecidos coloridos, falavam uma língua bonitinha, rara de se escutar no Brasil, de sílabas simples com vogais que se repetiam. Larbi disse que provavelmente eram da África Subsariana. De qualquer forma, era uma delícia ouví-las conversar, mesmo sem entender uma palavra sequer. O mais engraçado era a combinação turbante e brinco LV da Louis Vuitton.
Hoje Terra é Pequena
Clarie mora num apartamento de uns 50m² (o m² é muito caro em Paris e é comum as pessoas morarem com pouco espaço), com sala, cozinha, quarto, banheiro e um terraço exclusivo que é o forte do apartamento. É um pouco maior que o apê do Larbi. Umas 10 pessoas alegres estavam de pé e se dividiam entre o social e assistindo um jogo importante de Rugby que passava ao vivo na TV. Foi divertido mas pena que já tinha que pegar o RER (trem intermunicipal) e tomar o vôo para o Brasil.
Tati me levou a estação correndo e me pôs no trem. Poderia ter feito isso sozinho, mas como estava atrasado, uma francesinha esclarecida foi importante para me colocar no trilho certo sem perder tempo. A despedida foi encurtada pela chegada do trem. Ela voltou para a festa da Clarie, e eu estava a cominho do Brasil.
O trem quase vazio parou em todas as estações e ninguém entrou nem saiu. O caminho era longo e fiquei apreensivo em chegar tarde. Mas cheguei bem na hora do embarque.
No vôo fechei os olhos tranqüilo, alimentando a saudade que em breve estaria morta. Saudade da família, sobrinhas, de casa, dos amigos, do bairro conhecido. Da língua que domino as gírias, o sotaque, a cultura local.
Compilei um pouco as memórias das últimas semanas e cheguei a conclusão que além do muito que descobri sobre muitas coisas, aprendi também sobre mim mesmo, sobre a Tati, sobre o que é viajar. E que viajar é, em parte, voltar para casa crescido e com vontade de abraçar o mundo.
Gilberto Gil já dizia: Antes mundo era pequeno porque Terra era grande / Hoje mundo é muito grande porque Terra é pequena / Do tamanho da antena parabolicamará.
Fomos tratar do desjejum o mais longe possível do barzinho do dia anterior. O Izmaylovo Alfa-Beta era um edifício similar ao nosso, mas mais orientado a serviços, ou seja, tinha pequenos restaurantes, cafeterias e lojas de todos os tipos lá dentro. Um restaurante árabe exibia doces típicos e folhados salgados com ótima aparência. Escolhemos um de queijo e outro de queijo com alho. Estavam excelentes. Mas não aceitavam nem dolar nem cartão, e tive que ficar novamente como garantia enquanto a Tati trocava no guichê ao lado.
Gastamos o resto da manhã inteira mandando e-mails para os amigos que encontraríamos em Paris no dia seguinte e fazendo ligações. Só conseguimos sair do hotel às 13h.
Tomamos o metro até o Kremlin e compramos o ingresso por 300 rub.
Segundo o guia, as melhor atrações são fechadas ao público, visto que ali é ainda a sede do governo central. Dentro de seus muros, o Kremlin parecia um bairro bonito de largas ruas arborizadas e poucos carros. Além dos inúmeros prédios históricos que ainda serviam ao goveno russo, havia também um teatro ativo, muitos dos canhões que Napoleão perdeu na guerra, monumentos, um sino gigantesco (o maior sino do mundo, que nunca tocou pois se quebrou antes de ser implantado) e uma praça dominada por igrejas que foi o principal alvo de nossa visita. Todas as igrejas tinham a mesma decoração medieval soturna. Já havia me acostumado.
Em uma delas, alguns distintos homens e mulheres vendiam juntos CDs de coral religioso russo por €15 ou $20. Perguntei se dava para ouvir e um deles disse que cantavam a cada 10 minutos na igreja, para minha alegria. Montei em cima e fui contar para a Tati que havia encomendado uma surpresa para ela. Claro, ficou curiosa.
Sentamos e esperamos. Poucos minutos depois eles tomaram posição e soltaram lindamente a voz. Não durou 5 minutos. Bem, era só uma demonstração. No fim não comprei o CD de preço salgado.
Visitamos outras igrejas na mesma praça. Algumas eram usadas pelos reis e tinham seus tronos. Outras tinham túmulos de nobres famosos. Mas todas com a mesma imagem de um Jesus magro, triste e de cabelo estranho, e outra da Maria com seu filho pródigo com cara de adulto que parecia um mini ET.
Batemos perna de baixo de chuva mais um pouco pelo Kremlin e saímos.
A Catedral Colorida
Demos a volta por fora do Kremlin para chegar na famosa Catedral de São Basílio que é o ícone mais famoso de Moscow. É de fato muito colorida e pelo ângulo que vinhamos parecia totalmente assimétrica, o que conferia uma beleza irreverente.
Tínhamos poucos Rublos e tivemos que dizer que um de nós era estudante para conseguir meia entrada. A inteira custava 100 rub. Lá dentro não impressionava muito. Uma igreja ortodoxa comum. Não fosse por outro ótimo coral, desta vez inteiramente masculino, dando uma canja para vender CDs diria que nem precisávamos ter entrado.
Ovos Fabergè
De lá corremos de volta para o museu Kremlin Armoury, que tínhamos comprado ingresso junto com o do Kremlin, por 350 rub cada. Tínhamos hora marcada para às 16:30, provavelmente para espalhar com previsibilidade os visitantes.
O Armoury é um museu exuberante de roupas, carruagens, armas e armaduras, jóias, tronos, louças, prataria e arte da monarquia pré-soviética. Suas peças encarnavam o melhor estilo rococó como uma carruagem toda dourada com relevos barrocos. Uma beleuza.
Entramos de bico num grupo cujo guia era simpático e cativante. Aprendemos um monte.
Um dos pontos altos era a pequena vitrine que exibia os famosos ovos Fabergè entre outras jóias dessa antológica joalheria de São Petersburgo. Era de fato impressionante a outra categoria a que pertenciam essas peças de lindos detalhes e mistura inusitada de materiais.
Caça ou Vegetariano ?
Não tínhamos almoçado e estávamos famintos. Decidimos ir jantar de metro no único vegetariano que aparecia no guia: Mantram. Era um restaurante-loja natural-boutique de roupas zen com ar de descolado. Tinha uma variedade grande de comidas expostas e com boa aparência. Mas o esquema não era muito familiar: escolhia-se algo individual, uma salada de brócolis por exemplo, que então colocavam numa cumbuca e custava ± 50 rub cada. O preço individual para cada coisa inibia montar um prato com diversidade. Fomos embora chateados comentando que o Brasil precisava exportar a idéia de restaurante por quilo para a Rússia, talvez para o resto do mundo.
O guia falava de um restaurante chamado Bege, perto dali. De fato todo bege, bonito, moderninho mas pequeno. Tanto que a recepcionista disse que toda as mesas estavam reservadas. Pena.
Decidimos sair andando, passamos em frente ao Mantram novamente, e mais abaixo topamos com um restaurante em que muita gente se amontoava na porta. A Tati ficou na fila enquanto entrei para ver. No bar tentei me comunicar com mímica, a mulher do caixa não entendeu nada, a garçonete idem, mas o barman tinha mais vontade e nos entendemos.
Tinham uma mesa bem bonita de saladas e algumas coisas quentes. Resolvemos ficar e a garçonete nos levou para uma mesa no andar de baixo. O teto era baixo, meio abobadado e de tijolos e a decoração era de temas rurais e de caça. Tudo isso conferia um ar de taberna ao lugar. Havia outras mesas vazias nesse andar e não entendemos porque as pessoas esperavam na fila.
Demorou para sermos atendidos, o garçom precisava trazer pratos para a nossa mesa para podermos nos servir. Mas ai rolou e mandamos ver o self-service por 270 rub por pessoa.
Uma menina muito loira da mesa ao lado, de uns 6 anos, ficou brincando com a Tati tirando fotos dela. E a Tati entrou na brincadeira.
Era sexta-feira e depois do jantar resolvemos dar uma volta nas ruas lá perto, pois estávamos perto de um dos bairro elegante e boêmios de Moscow. Vimos novamente a loja de departamentos Цум (Tsum), hotéis novos, etc.
Não jantamos e acordamos com fome. Perto do hotel haviam diversos estabelecimentos que eram uma mistura de microsupermercado e padaria. Numa delas dois rapazes comiam de pé salgados e tomavam café e isso nos inspirou a ficar lá.
Erro crasso. Dividimos algo como um pastel frito de 25cm de comprimento recheado de repolho. Só uns 10% de sua área continha recheio, e mesmo assim era pouquíssimo e mal temperado. Tinha sido frito horas atrás, esquentaram no microondas o que garantiu textura de borracha, e a massa nem sequer era boa. Tínhamos também pedido um outro de maçã, assado, igualmente péssimo. Ao pedir o chocolate quente, perguntei se era feito com leite, e de fato era, mas só com o suficiente para poder dizer que levava leite, ou seja, umas duas gotas. O café da Tati estava igualmente aguado.
Aquilo foi tão péssimo e de mal gosto que nos perguntamos se faziam de propósito, ou se lhes faríamos bem em avisar que serviam coisas intragáveis. Deixamos pra lá.
Pegamos o eficiente metro e saímos por acaso na frente de uma loja-conceito da Nokia onde gastei meia hora enquanto a Tati estudava o guia.
Gorki Art Nouveau
Descemos uma alameda arborizada mas lá embaixo nos demos conta que era o sentido errado. Não perdemos a viagem porque encontramos por acaso o restaurante Кафе Пушкинъ (Cafe Pushkin), restaurante elegante que vimos no guia e fizemos reserva para o jantar.
Voltando pela avenida chegamos na bela casa-museu do escritor Maxim Gorki. Por fora a casa não tinha nada de mais, um jardim comum e tal. Mas dentro, do chão ao teto, tudo era arquitetado e decorado no melhor estilo Art Nouveau. Destaques: a madeira do piso tinha linhas arredondadas que se encaixavam e desenhavam formas da natureza. As portas e batentes eram grandes e bem feitos sempre com relevos de formas arredondadas e fluentes. Mas nada se igualava a lateral/corrimão da escada. Toda de pedra polida, começava em baixo com uma luminária com braços de polvo e subia em arranjos fluidos, ao longo da escada em meio-caracol, até o próximo andar. O peso e grossura da pedra cinza eram contrabalançeados pelas leves linhas naturais e se equilibravam na função de segurança de um corrimão. O belo ou o funcional? A boa arquitetura nunca vai deixar você escolher somente um. Os dois devem estar sempre juntos.
Almoço Moderninho
Ao leste da casa de Gorki, caminhamos por Tverskoy até a Kamergersky Per que é uma calçadão só para pedestres, moderninha, com gente bonita e restaurantes fancy. Aproveitamos para almoçar numa lanchonete meio natural que vendia baguetes, saladas e sopas em vitrines chamada Праим Стар (Prime Star) parecida com a Prêt-à-Porter de Londres. Comemos uma baguete com atum e salada e um roll de frango satay, mais bebidas e salada de frutas por 290 rub. Não queríamos comer muito pois estávamos reservando apetite para o jantar.
Ainda assim, fomos para outra lanchonete fancy e mandamos ver uma torta de frutas vermelhas. Ainda ficamos lá muito tempo observando as pessoas que entravam frenéticas em busca de um almoço rápido.
Шоколад (Chocolad)
Depois fomos para Teatralnaya, uma região com muitos teatros, inclusive o Bolshoi, e lojas de marcas famosas. Começou a chover e nos refugiamos em algumas delas, dando uma de excêntricos conhecedores de moda. Os artigos eram muito caros e de alta qualidade.
Em uma loja italiana de sapatos masculinos, a música ambiente era erudita e os sapatos tinham uma qualidade e mistura de materiais que eu nunca vi na vida. Os modelos não iam muito com o meu gosto, mas mesmo assim fiquei impressionado. Os preço estavam na casa dos 43000 rub ou algo em torno de R$4100 por um par de sapatos.
Numa cafeteria da rede Кофе Хауз (Coffee House, que estava em todo lugar) chamaram uma garçonete que arranhava o inglês um pouco melhor. Queríamos um chocolate (шоколад) quente e ela sugeriu um que era diferente do que imaginávamos. Muito grosso, muito forte, praticamente para se comer de colher. Bem bom, por 129 rub cada. O WiFi da cafeteria não era gratuito.
Metropol e Coral Russo
Então fomos atrás de conhecer o famoso Metropol Hotel seguindo o guia. Chegamos em uma avenida larga e movimentada e do outro lado havia o restaurante Metropol, a boutique Metropol, o night-club Metropol e outros estabelecimentos Metropol bem elegantes. Nada de hotel. Ele ficava no mesmo bloco, mas se entrava por uma travessa pequena que custamos a encontrar.
Era chique, decorado em estilo entre art nouveau e algo anterior, mais romântico. Ostentava riqueza e elegância. O que impressionava era seu restaurante. Um salão enorme mas aconchegante com um teto ligeiramente abobadado todo feito de vitrais com temas floridos. Algo impressionante. Nos grandes hotéis de Las Vegas pode-se encontrar réplicas deste estilo mas só ali respirava-se a autêntica vibração de uma Rússia exuberante, monárquica e pré-revolução. Não dá para imitar isso e poucos lugares do mundo ainda sustentam esse espírito além da decoração.
Voltamos para a rua e nos demos conta que estávamos muito próximos da Praça Vermelha, que estava nos planos só para o dia seguinte, mas fomos espiar mesmo assim caminhando por ruas apertadas.
Chegamos na Praça Vermelha umas 17h por um canto onde havia uma igreja cujo sino estava tocando a chamar para o horário da reza. Só nos demos conta disso quando o sino parou e a voz do padre e de um coral saíram pelos alto-falantes da rua. Estávamos do lado, resolvemos ver a reza.
Tinha acabado de descobrir algo novo na vida: corais religiosos russos são uma jóia da música erudita e bastante populares. Três homens e duas mulheres cobertas por véus mal eram vistos atrás de uma divisória, mas cantavam tão lindamente! Eram afinados, harmonizados e imprimiam todo seu coração e fé no cantar.
Enquanto isso o padre circulava a igreja balançando um incenso em pêndulo. As pessoas chegavam e saíam, geralmente fazendo o sinal da cruz e demonstrando devoção.
A igreja era decorada com aquelas pinturas medievais tristes e magras carregadas de ouro. A certa altura o padre entrou numa saleta separada por uma portinhola e conduziu a liturgia de lá, revezando o que se ouvia com o coral, que era o que mais me interessava, e um outro auxiliar que lia ou rezava coisas em diversos pontos fixos da igreja. Este último era um tanto veloz e procedural e, portanto, frio. Mas graças ao coral e algumas vibrações do padre, foi uma cerimonia tocante e emocionada no geral.
Ficamos lá um bom tempo, mais para ouvir as incursões do coral. Muitas pessoas ascendiam velas em estações dedicadas a isso e resolvi fazer o mesmo. Comprei a mais barata por 5 rub, acendi, agradeci a oportunidade de ter conhecido a jóia cantada e voltamos ao circuito turístico.
Jantar Chique
Já anoitecia e a Praça Vermelha ficaria para o dia seguinte. Mas precisávamos enrolar até as 20h para o jantar que havíamos marcado. E nada melhor que um shopping center para passar o tempo.
Uma das laterais da Praça Vermelha é o enorme Shopping Gum (Гуm) com seu edifício gigantesco e de linhas aristocráticas. Não conseguia imaginar o que um edifício daquele tamanho era nos tempos Soviéticos.
Dentro havia lojas das marcas mais sofisticadas da Europa e do mundo. E preços altíssimos também. Eram três corredores a perder de vista de tão compridos, ligados por pontes em seus andares superiores. Haviam também chafarizes inteligentes e decoração neo-clássica.
Paramos para descansar e matar o tempo em um restaurante cujas mesas ficavam sobre uma dessas pontes. Na mesa ao lado, dois rapazes de uns 13 anos treinavam suas aulas de perspectiva, desenhando as compridas linhas do edifício enquanto conversavam e riam. Aquele era um bom lugar para isso, devido à altura e visão panorâmica do shopping.
Fomos, debaixo de chuva, até o metrô, pegamos o trem e descemos na estação Mayakovskaya porque o guia dizia ser a mais bonita da cidade. No teto da estação, havia mosaicos cujos temas se intercalavam entre a aviação e algum esporte, sempre com detalhes soviéticos como a estrela e a Foice e o Martelo. Não saímos para a rua e pegamos outro trem para chegar no Кафе Пушкинъ (Cafe Pushkin) que reserváramos de manhã.
Às 20h o restaurante estava cheio, mesmo com chuva. Ainda bem que fizemos reserva, a recepcionista lembrou de nós assim que entramos e imediatamente nos levou para uma boa mesa. A iluminação era bem baixa e aconchegante. Mantinha a decoração de uma aristocracia do século XIX e junto com a iluminação dava a sensação de realmente estarmos jantando naquela época.
Enviaram um garçom com um inglês razoável que nos entregou o cardápio inglês-francês. Era divertido notar que as descrições dos pratos em inglês eram bastante diferentes dos mesmos em francês, então lemos os dois e interpolamos para entender melhor o que iríamos comer.
A Tati pediu duas entradas: cogumelos gratinados em bastante creme em uma cumbuquinha de barro, e pelmeni (um tipo de ravioli russo) recheado de salmão temperado com ervas por cima e creme de leite a parte. O primeiro estava ótimo e bem consistente e o segundo foi bom. Eu achei que as ervas dominaram de mais o sabor e fizeram o salmão sumir.
Eu pedi uma salada individual de folhas, tomate, pepino, aspargos e outras coisas, que por si só já era uma refeição de tão bem servida. E um peixe que não reconheci o nome acompanhado de espeto de legumes, batatinhas assadas com molho de creme, e não-lembro-mais-o-que. Veio um peixe com cabeça e tudo (que eu dispensaria) e o prato no geral estava ótimo. Era bastante comida.
Demos uma olhada na carta de vinhos. Reconhecemos o argentino Alta Vista, vinho barato, de razoável a simples, cujo preço no restaurante era tão alto e incompatível que apaguei da memória. Com base nisso comparamos os outros vinhos da carta e resolvemos que seus preços eram altos de mais para o alto risco de levar coisa ruim. Não pedimos vinho.
A conta saiu 2480 rub que pagamos com cartão. Não dava para incluir o serviço e tivemos que deixar cédulas a parte para o garçom. Foi uma ótima noitada e valeu a pena.
O restaurante foi elegante e caro, mas voltamos de metrô mesmo para o hotel, debaixo de uma chuva intensa. Às 23:15 estávamos na cama.
Acordamos antes do despertador, umas 7h, comemos frutas e milho em lata no quarto e preparamos uma mochila com tralhas para passar o dia caminhando em Moscow.
Descemos umas 10h e trocamos só uns $20 rublos porque o cambio do hotel não parecia ser dos melhores.
Caminhamos até o metro praticamente seguindo o fluxo das pessoas. A estação Partizanskaya tem estátuas bem soviéticas de partidários, homens e mulheres armados.
Tudo no metro é pesadão e feito para durar para sempre. Não necessariamente bonito. Todas as paredes são de mármore branco, cinza ou cor de carne, os trens são muito compridos, de metal grosso, robustos, rápidos e barulhentos. Tanto que não dá para conversar sem gritar durante a viagem e é comum ver pessoas com fones de ouvido engraçados e enormes que anulam ruídos externos. A viagem é longa e veloz de uma estação a outra, o que mostra que a cidade é grande, mas vê-se estações em toda parte, o que prova que a malha do metro é densa e eficiente.
Uma coisa que chama muito a atenção são as escadas rolantes. Tinham aparência industrial pesadona, bem soviética, antigas mas que transmitiam confiabilidade eterna. Feitas para durar para sempre. Nunca vimos uma quebrada e nem havia opção de escada tradicional ao lado. Nem pudera, pois transportavam pessoas por uns impressionantes 70m diagonais. Nunca vi escada tão comprida.
Elas não eram uma conveniência. Se quebrassem as pessoas provavelmente não teriam forças para subir a pé e esperariam serem consertadas. A viagem até em cima era veloz, íngreme e longa o suficiente. A Tati teve uma leve tontura pela mudança de referência de equilíbrio.
Eu bati uma foto lá de cima e saímos na rua. Uma mulher decidida me puxou pela mochila e reclamou algo em russo sem parar de andar. Fiz cara de “não entendi nada” com um sonoro “what ?” e ela fez sinal de fotografia com gesto negativo. Ou estava comunicando que era proibido tirar foto na estação — o que achamos improvável — ou avisava que não permitia tirarmos foto dela, usar sua imagem, etc. Ah, faça-me o favor. Coisa de ocidental ultracivilizado. Sem parar de andar, desistiu de reclamar pela ausência de meio de entendimento.
Para um brasileiro médio, Moscow é uma cidade cara. Em media, as coisas têm valores um pouco mais elevados que a parte cara de São Paulo. Apesar disso, pode-se encontrar coisas baratas também.
Bateu uma fominha e numa barraca no calçadão de Arbat e comemos umas burekas gostosinhas por uns 16 rublos cada. 600ml de Coca Light custavam 32 rublos nessa mesma barraca.
No fim do calçadão havia um supermercado elegantérrimo que vendia importados e outras delicadezas. Caríssimo também.
Entramos num bairro de ruas apertadas onde estavam todos os consulados: México, Canada, Áustria, Camboja e outros. Alguns ficavam em casas históricas ou de arquitetura art-nouveau.
Numa venda compramos um picolé Mega de cassis e frutas vermelhas, uma variedade que nunca vi no Brasil. Num dos congeladores havia caixas de produtos Sadia. Fiz questão de conferir que era feito no Brasil. E em outro dia vimos produtos da Perdigão mas que só reconhecemos pelo logo. Na Rússia chama-se Фазенда (Fazenda).
Um spa zen bem bonito, pequeno e escondido tinha serviços de massagem de 1.5h de duração por 2600 rub.
Entramos numa igreja ortodoxa pela primeira vez e vimos um estilo completamente diferente da católica: não há onde sentar, é perfumada de incenso e cheiro de velas queimadas, menos profunda, menor e decorada com pinturas de Jesus, santos e santas por toda parte. O estilo das pinturas é seco, simples, triste e plano, como as pinturas medievais pré-renascentistas, no pior estilo século XI. Incrível como 10 séculos depois o estilo não muda.
De lá fomos à Catedral Cristo Salvador que foi reconstruída em 1997. Seu estilo e magnitude não combinam mais com esta era e gerou muita revolta quando foi construída.
Almoçamos no restaurante Artist’s Gallery por 335 rub por pessoa num self-service que chamam de business lunch. Foi a gloria poder escolher entre tantas saladas frescas de folhas e com menos óleo. O restaurante era bonito também, uma casa antiga e bem conservada. Um dos salões tinha pé direito altíssimo e vitrais coloridos. Dava quase a sensação de estarmos a céu aberto.
Siando do restaurante vimos um prédio de arquitetura muito moderna, com vidro, estruturas expostas e formas inquietantes.
Circo
Atravessamos o rio Moscow que tem uma respeitável largura com o dobro do Tietê em São Paulo. Tentamos ir ao parque descansar um pouco, mas instalaram uma roda gigante dentro e outras diversões e cobravam entrada de 50 rub.
Desistimos e atravessamos a avenida para o parque anexo a exposição de arte e cochilamos num banco. O fuso horário da China ainda fazia efeito sobre nós.
Era uma construção redonda e relativamente moderna. Cabiam milhares de pessoas lá circundando o palco inteiro no centro abaixo. Parecido em forma mas menor que o MGM Grand em Las Vegas.
Compramos ingressos pelo preço: 300 rub. Haviam mais baratos e mais caros até uns 1700 rub que ficavam na beira do palco. Na sala de entrada vendiam tranqueiras e haviam bichos incomuns para as crianças segurarem e tirarem fotos.
A apresentação começou às 19h e tinha mais de duas horas de duração, um pouco comprida de mais apesar do intervalo. Palhaços modernos e talentosos, multinstrumentistas e que dançavam sapateado, cavalos e cavaleiros dando saltos perigosos, camelos, malabaristas e trapezistas aéreos, focas espertas enormes, leões e dançarinos e efeitos de raio laser dividiam o palco versátil que virava ringue de patinação no gelo e piscina profunda.
É um espetáculo bonito e que vale a pena, mas é bem tradicional e coisas como Cirque du Soleil já estão um passo a frente.
A mudança do fuso horário nos derrubou e fez a volta para o hotel parecer mais longa do que realmente era. E chegando lá ainda fizemos algumas ligações VoIP antes de chapar umas 23:30.
Vamos hoje fazer Kashgar-Urumqi-Novosibirsk-Moscow. Uma longa viagem com muita troca de aeronaves e re-check-ins.
Às 7:30 fomos fazer check out e encontrar com Anwar. A moça da recepção se ausentou e voltou minutos depois com uma camiseta que deixei no quarto para o santo, o que significa que ela mesma foi fazer a verificação de saída. Quando digo que esse hotel é meio miserável vocês precisam acreditar em mim.
No aeroporto, Anwar nos pôs na fila, deu o xerox do fax do bilhete dos vôos dizendo que isso era suficiente, se despediu e nos deixou. Não foi muito calorosa a despedida.
Varias pessoas tentavam furar a fila do check in no aeroporto. Impressionante como uma sociedade cheia de regras não consegue respeitar as mais óbvias.
Depois de respirar muita fumaça de cigarro na sala de espera, tomamos o vôo Kashgar-Urumqi da Hainan Airlines num Boeing moderno.
Já em Urumqi, um chinês de dentes completamente marrons nos pegou, deu o bilhete até Moscow, e nos levou ao outro terminal — o internacional —, concorrendo com os carros pois não havia calçada. Nos colocou numa fila qualquer que não andava e se despediu. Depois descobrimos que a fila era a do vôo para Baku no Azerbaijan. Mudamos para outra que só tinha loiros e que ia para a Rússia.
No check in a minha mala estava 3kg acima dos 20 permitidos. O funcionário colocou minha mochila de mão no lugar para passar no peso, mas despachou minha mala mesmo. Que trambique !
Queríamos gastar os yuan que sobraram, mas depois do check in não tem mais volta nem lojas. Os oficiais que carimbam passaporte só chegaram umas 14h. O Duty Free estava fechado. Só um bar/loja vendia de whisky a plantas e castanha de caju. As garçonetes andavam com um bolo de dinheiro na mão, vendiam agressivamente, e tinham olhar de “mani mani mani”. Falavam inglês precário, com muito sotaque e orientado a valores. Os preços obviamente variavam de acordo com a cara do cliente, e sempre perguntavam quanto ele pagaria depois que fizesse expressão de “está caro”. Uma bonita caixa de chá de jasmim muito perfumado começou por 150 yuan mas o levamos por 100 yuan. Uma barrinha de chocolate começou em 15 yuan e saiu por 10 yuan.
O vôo da Siberian Airlines estava vazio. Era um A319 novo decorado com cores fortes, modernas e bonitas. Tinha o mesmo espírito jovem da Gol. Voamos esticados, confortavelmente, conversando sobre a impressionante história da URSS/Rússia que líamos no Lonely Planet e o que iríamos ver nos próximos dias.
Tajiks na Sibéria
O pouso em Novosibirsk foi perfeito. Fica bem no meio do enorme pais, na Sibéria. A paisagem é completamente plana, sem nenhuma montanha para nenhum horizonte que se olhasse. E as cores eram de outono em todos os terrenos loteados, plantados e já colhidos para o inverno. Pena que não conhecemos mais da Sibéria.
No aeroporto entramos na fila do passaporte. Havia ao lado um bloco de rapazes chegando do Tajikistan. Uns 80, todos com os mesmos traços e cara de perdidos e inseguros, e só 2 mulheres. Estávamos em outra fila, não sei porque. Tinham dificuldade de manter fila e se amontoavam para serem atendidos. Quando chegava a vez do próximo, uns 4 davam passo para frente ao mesmo tempo mas só um vencia. Não os culpo pois não havia sinalização alguma de fila. Um funcionário gritava em russo de tempos em tempos algo como “ai, quero ver fila aqui, formem uma fila, aqui, bem aqui, por favor, uma fila gente, desamontoem”. Então davam uns passinhos para trás em bloco, nada que parecesse uma fila, e passava 1 minuto e reamontoavam de novo. Cena cômica.
De repente uma tal de Julia apareceu chamando pelos nossos nomes. Disse que iria nos ajudar na transferência para Moscow. Orientou na passaportagem, apresentou a Anastacia que iria ajudar com malas e tal. Esta nos levou para outro terminal, nos colocou para esperar numa sala elegante com WiFi de graça que não funcionava, levou nossos passaportes e voltou minutos depois com o cartão de embarque. Fomos superbem atendidos, também não sei porque (será que as mãos do Alê chegaram até Novosibirsk?). Até parecíamos VIPs.
O Poente Eterno
A entrada no avião russo foi sem finger, sem guarda-chuva, molhada e fria.
Decolamos em Novosibirsk às 19:50 GMT+7 e pousamos às 20:30 GMT+4 em Moscow. Demos 1/8 de volta ao mundo em 4 horas de viagem, quase tão rápido quanto a rotação da própria Terra.
Decolamos já a noite e voamos direto para o oeste, atrás do sol já posto. Com tanta vontade que ele chegou a nascer novamente para nós. De fato, durante as 4 horas da viagem o sol se manteve praticamente estático no horizonte e só desapareceu quando pousamos. Um fenômeno natural que só pode ser observado na nossa era de jatos.
O aeroporto de Moscow é enorme e iluminado. Havia um grande número de veículos de serviço circulando e muitos aviões. Mas onde estavam os nomes familiares? KLM, Air France, American Airlines, British Airways, Alitalia são substituídos por nomes que nunca vimos: Domodedovo, Kras Air, Berlin Airlines, Continental Airlines, S7 etc. Os aviões também eram diferentes, grande parte russos, com 3 turbinas na cauda, nenhuma nas asas e bico de outro formato. Era tudo muito igual e muito diferente, como pousar na capital de um universo paralelo.
Como nossos vôos foram todos mudados, chegamos em horário diferente do previsto pelo pacote e ninguém esperava por nós segurando plaquinha com nosso nome. Desesperamos. O aeroporto de Moscow, apesar de moderno, não eh exatamente amigável a quem não fala russo.
Muitos homens nos abordavam em russo oferecendo taxi de $80 a $50, mas dava medo. Eu só pego taxi assim no Brasil, onde sei julgar bem a intenção por trás do tom da voz. A única vez que tentei isso, em Buenos Aires, não foi uma viagem muito confortável e o cara tentou me enrolar. Então compramos esse serviço com cartão de crédito em um guichê por 1700 rublos, ± $70, e fomos acompanhados por um segurança até o carro. Dor de cabeça para que?
A saída do aeroporto foi intransitável e demorada. Vimos um novo terminal moderno, lindíssimo e enorme sendo construído.
Por volta das 22h, a viagem até o hotel durou uma meia hora sem nenhum trânsito. Começamos por algo que parecia a Rodovia Ayrton Sena, depois highways urbanas e um pouco de ruas de bairro até chegar no hotel. Moscow tem uma dimensão completamente maior que as outras cidades desta viagem. Muitos carros modernos, asfalto de primeira, placas claras, enormes e bem iluminadas, muitos outdoors, postos de gasolina e canteiros bem cuidados. Aroma de primeiro mundo. Moscow é uma velha Europa que contém a magnitude das highways americanas, uma mistura que me agrada.
Olá Internet
O hotel Izmaylovo é um complexo de edifícios enormes construídos para as olimpíadas. Tem 8000 camas e dizem ser o maior da Europa. Põe inveja também nos monumentais hotéis de Las Vegas. Ficamos no edifício Vega (Вега) de 3 estrelas.
Enquanto Tati fazia o check in, achei uma rede WiFi aberta e rápida disponibilizada pelo hotel. Liguei meu celular bacana, conectei-o por VoIP ao serviço do Gizmo e fizemos ótimas ligações para o Brasil. Checamos e-mail também, fiz backup deste diário e a Internet é linda.
O quarto parecia ter sido entregue ontem pelo reformador. Carpete novo, moveis modernos, banheiro limpíssimo de louça nova. Ganhamos inclusive um upgrade para um quarto com cama de casal.
Tomamos um banho maravilhoso sem molhar o chão do banheiro e fomos dormir quase meia noite.
O cafe servido no hotel era idêntico todos os dias. Mesmo pão, mesma geleia, mesmo iogurte. Ainda bem que compramos umas frutas para variar.
Às 9h encontramos com Anwar e o Sr. Gwan e nos mandamos ao lago Karakul por uma estrada asfaltada. Tentamos dormir o caminho todo mas aparentemente os motoristas chineses são formalmente instruídos a usar muito a buzina, com longos apertos irritantes.
Paramos no mercado de uma vila no caminho para comprar nan e romãs tao doces como eu nunca vi.
A paisagem foi ficando montanhosa e muito bonita, apesar de completamente árida. Rumávamos ao longo de um rio quase seco em direção a montanhas altíssimas de pico nevado que Anwar disse ser do Himalaya. Isso ergueu bastante o meu humor. Disse também que o Pamir era parte do Himalaya. A estrada levava ao Pakistan e era bem melhor que a que ia ao Kyrkyzstan.
O lago tem talvez o mesmo tamanho da Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio, mas é mais comprido e com certeza mais raso. Era envolvido primeiro por planícies de pastagem rala e depois por montanhas nevadas. Anwar disse que sua água é potável. Era também de um verde-turquesa incomum e arbitrário que saltava aos olhos no meio da paisagem desértica.
Estava razoavelmente frio mas o forte vento gelado fazia ser um pouco sofrido ficar lá. Não estávamos preparados para aquilo. Depois de uma caminhada, voltamos para o carro.
Fomos para o outro lado onde havia uma grande planície bem delimitada pelas montanhas e o lago, e onde camelos, jumentos e iaks pastavam livremente. Pulamos uma cerca, corremos atrás dos bichos fujões, tiramos umas fotos e voltamos para o carro quentinho.
Caça ao Sorvete de Ouro
Dormimos praticamente toda a volta e chegamos em Kashgar umas 16:30 secos por um sorvete. Marcamos com Anwar jantar às 20h, despedimos e fomos bater perna.
Perto da rua das lojas e galerias encontramos uma feira que parecia a sucursal chinesa-han do Mercado de Kashgar do dia anterior, que era mais uyghur. Muitos restaurantes/barracas de lamen e umas carnes estranhas. Conforme passávamos nos chamavam para comer.
Nos enchemos de procurar um sorvete descente e tascamos uns picolés vagabundos por 1 yuan cada.
Regras Sociais
Ai entramos em um restaurante fancy chamado Eversun Cafe, de “westfood”. Tinha ambiente agradável, tocava uma musica zen e o cardápio era bem mais caro que a média, mas ainda barato para padrões paulistanos. Pensamos em pedir ao Anwar nos levar para jantar ali mais tarde, mas precisávamos arquitetar como burlar seu preconceito aos chineses-han, e ver se seu budget do dia para refeições cobria aquela conta.
Chegamos no hotel umas 19h e tentamos usar a Internet lá mesmo, em computadores bem piores, link mais lento, por 8 yuan a hora (contra os 2 yuan do outro dia). Deixaram-nos instalar o Gizmo para telefonar mas não funcionou. Respondemos uns e-mails, organizamos umas fotos e Anwar chegou.
Levou-nos a um restaurante paquistanês atravessando a rua que era feio, tinha moscas e não inspirava. Sugeri irmos ao uyghur do primeiro dia, pedimos basicamente as mesmas coisas e foi ótimo.
Conversamos sobre casamento e dote, virgindade, aborto, independência das mulheres e dos jovens. A certa altura não olhava mais para a Tati devido as coisas que ele dizia, como a mulher ter que casar virgem, ser impura caso contrário e ser inaceitável um casal morar junto sem estar casado. Ficou um pouco constrangido no final porque, acredito eu, nossos argumentos eram muito mais fortes e bem embasados.
Talvez Anwar não seja a melhor pessoa para defender sua civilização, mas todos os exemplos que dava mostravam como essa sociedade era materialista, voltada às aparências, machista e atrasada aos nossos olhos ocidentais, apesar de ter uma veste espiritual e altruísta. O mais impressionante para nós foi ver até que ponto esses códigos estavam gravados em seu Eu porque mesmo vivendo um casamento aparentemente infeliz — ou ao menos indiferente —, Anwar continuava defendendo a virgindade, a compra da esposa pelo futuro marido, a castidade antes — e até depois — do casamento, e desprezava a “sujeira” das relações sexuais e a vilania do prazer.
Depois de nos despedirmos, comemoramos a sorte de termos nascido numa sociedade como a nossa, mesmo com todas as suas imperfeições.
Chegamos umas 22h no quarto, fizemos as malas, tomamos banho e fomos dormir.
Anwar decidiu ir primeiro ao mercado de animais. Ele estava um pouco de mau humor e tivemos de convencê-lo a não esperar no carro e vir conosco. Depois entendemos porque.
A feira funcionava ali há 6 anos, uma área murada do tamanho de um campo de futebol. O chão é uma mistura de cascalho, bosta seca e restos de capim da comida dos animais. Ovelhas de bunda gorda, peludas ou tosadas, jegues, camelos, cavalos, bois, muito pó, homens sujos vestidos com roupas muito similares se confundiam com turistas de roupas coloridas de tecidos de alta performance, câmeras pesadíssimas e cara limpa.
Animais amarrados tentavam copular exasperadamente e molhavam o chão.
A sonoplastia vinha do mugido das vacas, do berro das ovelhas, dos urros dos jegues. Mas a tudo isso se sobrepunha as discussões acaloradas das negociações dos uyghur, que pareciam que iam sair no tapa, mas terminavam apertando as mãos sorridentes.
Na saída, uma ovelha jazia morta com o pescoço cortado e o sangue derramado no chão. Um rapaz muito eficiente fez um buraco em sua perna traseira e soprava para a pele desgrudar. Quando se afastava para tomar fôlego, tinha sangue ao redor da boca. Depois começou a fazer incisões em locais precisos e remover a pele cirurgicamente, tudo diretamente sobre o chão da rua. Essa é a origem da carne e não o bem de consumo que supermercados vendem em embalagens a vácuo. Muitas pessoas parariam de comer carne se vissem essa cena dantesca com mais freqüência.
Negócio da China
De lá fomos ao mercadão de fato. Imagine o Mercado Municipal de São Paulo, mais a rua José Paulino com suas lojas de tecidos, as lojas de roupas feias do Brás, algumas partes da Sta Efigênia e seus componentes eletrônicos, mais dezenas de camelôs de sapatos de todos os tipos inclusive usados, mais vendas de vestidos de festa, ternos, sedas, cashmere, artesanato, especiarias, higiene pessoal, louça, lataria, frutas e legumes. Esse é o mercado de Kashgar.
Não há compra sem pechincha porque o preço é feito de acordo com a cara do freguês. Nunca está escrito sobre o produto e o preço final pode ser menos de 50% do primeiro preço. Esses caras inventaram a lei da oferta e da procura.
Em certos lugares havia tanta gente, e-bikes, motos e carga passando que tínhamos que nos segurar para não nos perdermos um do outro. Mesmo assim não fazíamos a menor ideia de onde estávamos e foi um barato.
Umas 14h encontramos o Anwar no lugar combinado e ele nos ajudou a comprar chá de especiarias. Mas o homem moeu demais e virou um pó que deixou a Tati chateada. Moer assim é coisa de quem faz temperos e não chá. De qualquer forma, o saco fechado deixava um perfumado aroma de cardamomo e cravo no quarto do hotel.
Do mercado fomos almoçar perto do hotel. Anwar pediu a comida mas esperou na rua. Estava em jejum.
Depois fomos ao hotel, dormimos até umas 17h e fomos bater perna na avenida de lojas chinesas, a principal da cidade.
Han chinese
Numa livraria compramos todos os exemplares do Mister O e Mister I, quadrinhos simpáticos sem palavras.
Entramos em shoppings, galerias, vimos restaurantes han-chineses autênticos, compramos roupa sem falar 1 palavra de Chines. Uma calculadora pode ser um ótimo mecanismo de comunicação. Finalmente conhecemos a China chinesa.
Na saída de uma grande galeria, já escuro, casais dançavam como em dança de salão ao ar livre. Não entendemos se era uma aula ou se estavam se divertindo. De qualquer forma entramos e gastamos os passos que tínhamos aprendido nas aulas no Brasil.
Um senhor escrevia no chão aquela caligrafia bonita com agua e um pincelzão molhado. As frases saiam na vertical. Outro homem andou nervoso sobre a caligrafia, gritando com o escritor a ponto de espanta-lo para outro lugar na praça, sem dizer uma palavra. E continuou a escrever.
Voltamos ao hotel para encontrar Anwar que atrasou meia hora. Ele apareceu com sua e-bike e nos deixou dar uma volta. Eu quero uma e-bike: completamente silenciosa, forte o suficiente mas com pouco torque, confortável e fácil de usar. A bateria tem autonomia de uns 100km e passa a noite recarregando numa tomada simples. Custa uns 3000 yuan e todos tem uma porque o governo proibiu o uso de motocicletas de combustão no centro das cidades por serem perigosas e barulhentas. Seria uma ótima solução para cidades como São Paulo, se tivéssemos mais faixas para bicicletas.
Nos levou a um restaurante muito elegante que um holandês no hotel disse que parecia caro mas é barato. Anwar pediu uma sopa de carne com legumes para a Tati e um arroz branco com legumes para mim, além de um preparado quente de berinjelinhas com molho de tomate bem apimentado. Estava tudo ótimo.
Aquilo era considerado um restaurante fast food apesar de não parecer. Na verdade todos que fomos eram assim, e a comida de fato chegava rapidamente. Restaurantes normais servem banquetes para varias pessoas, e a conta sairia uns 200 yuan. Mas nestes não chegava a 70 yuan.
Conversamos sobre coisas leves, línguas, a sociedade Uyghur, vícios, vida noturna, e um imaginário “Uyghuristan”. Anwar disse que uyghur são muito ciumentos e tem dificuldade de trabalhar em equipe pois brigam entre si, mas ao mesmo tempo todos churingas tem talentos. Estávamos todos felizes e foi agradável.
Internet subversiva
Precisávamos descarregar a câmera e havia uma enorme LAN house ao lado. Na bagunça da fila para se registrar, Anwar disse que esta era “muito chinesa” e havia outra perto dali mais uyghur, com cabines privativas e menos fumantes. Por causa do excesso de fumaça acabamos seguindo ele.
Por 2 yuan por hora recebemos ótimos computadores com Internet muito rápida. Era um lugar com muitos salões grandes e poltronas confortáveis. Deviam haver mais de 100 máquinas ali.
Ao plugar o iPod para receber os arquivos, dava tela azul sempre. Tive que usar o PC do administrador no quarto de dormir dele, onde havia espaço exato só para mais a cama.
Estava tudo em chinês e operamos os PCs baseado na lembrança da posição dos ícones e opções dos menus. Se fosse Linux, como isso muda em cada distribuição, provavelmente estaríamos completamente perdidos e não iríamos conseguir usar nada.
Não havia nenhum software de VoIP e nem tentei instalar porque percebi que o PC era todo protegido e de uso restrito. Não havia MSN Messenger instalado e no lugar usavam um tal de QQ. Depois reparei que isso era comum em outros lugares. Vi muitos ícones do KDE no desktop. Selecionei o do Konqueror mas abriu um programa que não conhecia.
Acessar a Internet tem uma burocracia considerável na China. Todo mundo tem que apresentar documento, ser registrado e se fizer algo subversivo tem que prestar contas para a rapaziada do Mao. Após apresentar os passaportes, nos deram um usuário e senha. A máquina deslogava após 1 hora de uso.
Pessoas iam lá principalmente para jogar, para surfar um pouco na Internet ou para assistir filmes e seriados. Isso mesmo: uma pagina interna indexava filmes e episódios de seriados já baixados disponíveis em seus servidores. Um clique no browser abria o player e a sessão começava. Só descobri isso porque foi o que Anwar fez (e me mostrou) enquanto usávamos o ciberespaço. Ele na verdade só vinha para LAN houses para isso. Nem e-mail tinha e acabei criando um GMail para ele.
Chegamos no hotel 1h da manha, tomamos banho e chapamos imediatamente.
Estamos desde sexta a noite em Kashgar, uma China das Arabias. A unica coisa que lembra China aqui eh que algumas lojas tem letreiros em chines, todo o resto eh arabe, inclusive a fisionomia da maioria das pessoas que eh de um povo chamado Uyghur.
Deveria existir um Uyghuristan, mas a China nao deixou e mantem essa gente meio socialmente oprimida.
Hoje fomos ao mercado de domingo, que eh uma mistura de Mercado Municipal, Festa do Peao de Barretos, R. Santa Efigenia, e a feira do bairro, tudo somado e multiplicado por 12.
As coisas sao bem baratas, inclusive eletronicos e comida que continua apimentando nossas entranhas. Estou tentando balancear as coisas com sorvete e cha verde. Vegetarianos sofrem aqui. Ou tem carne ou eh cozido com carne, nao tem muito jeito. Esta eh uma China muculmana/iraniana/persa, nao budista.
De qualquer forma, soh agora comecou a me cair a ficha do barato de viajar por lugares completamente diferentes do nosso mundo. Gosto daquele ditado: soh podemos saber realmente quem somos se conhecermos pessoas completamente diferente de nos. Esse deveria ser o ditado da diversidade porque soh experimentando mundos novos anulamos vicios e habitos do mundo em que vivemos, e o que sobra eh a essencia de nos mesmos. O delta.
OK, viajei na viagem…
Amanha vamos para o lago Karakol com a promessa de paisagens de tirar o folego. Ai temos mais 4 dias de Moscow.
Nasdravia, Namaste, Xush Kilibsiz, Hair Hosh e bye bye
O café era servido das 7:30 às 8:30, horário nada amigável para turistas. Chegamos mais de 8h, muitas coisas já haviam acabado e não tinham o costume de repor. Nada de frutas, nem queijo, nem suco, nem água. Só alguns tipos de pães fritos ou no vapor, dumplings recheados de verduras, ovos fritos, umas verduras cozidas, chá e cafe. Nos safamos com uma geleiazinha escondida atrás do repolho refogado com pimentão.
Às 9h encontramos com o Anwar e fomos à parte histórica da cidade, que tinha muito em comum com as cidades antigas que vimos em Tashkent, Khiva e Bukhara.
Fomos primeiro na mesquita Id Kha, a maior e mais antiga da China. Foi construída com o dinheiro de uma milionária que estava indo em peregrinação para Meca, não pode seguir em frente porque havia problemas na Índia e acabou presuntando por aqui mesmo. Daí pegaram a grana da véia e construíram a bela mesquita. O mais bonito mesmo era o jardim de rosas e árvores (poplars) interno à mesquita. Dentro, a estrutura conhecida de gesso colorido, pilares decorados e uma curiosa influência chinesa na decoração dos tetos, com flores e brilho de naca.
Esconda Seu Rosto, Mulher !
Saímos da mesquita para ver a rua dos artesãos, próxima. Andamos pelas ruas cheias de lojas de artesanato e outras coisas lá perto. Uma loja de instrumentos vendia dutors de vários tamanhos e também violinos, contra-baixos, e outros instrumentos feitos ao estilo dessa região. A Tati comprou um de brinquedo para o Leozinho.
Vimos um ourives trabalhando o ouro, um carpinteiro rapidamente transformando tocos de madeira crua em peças acabadas para moveis, com ajuda do torno elétrico.
Haviam também muitas mulheres com o rosto completamente coberto por véus grossos e 2 meia-calça sobrepostas. Anwar disse que isso servia para que mulheres casadas não sejam olhadas e cobiçadas nas ruas. Ele achava isso correto. Argumentei que isso era problema de quem olhava e não da mulher, mas disse que isso é uma superstição que respeitam.
Chegamos numa esquina onde dezenas de pessoas se amontoavam em pequenos círculos. Estavam comprando e vendendo celulares usados em frente a uma galeria de lojas e oficinas focadas em celulares. É o mercado de pulgas de celulares. Olhei alguns preços mas fomos embora.
Almoçamos cedo e sem fome em um restaurante popular onde se divide a mesa com outras pessoas. Anwar decidiu horário, local e o que iriamos comer sem fazer demais pesquisas de mercado. Nem esquentamos. Pediu uma sopa de macarrão com carne para a Tati, lamen vegetariano para mim e dumplins (pão cozido no vapor) supostamente vegê de abobora, mas tinham pedacinhos de carne dentro e muito gosto de gordura animal. Anwar esperou fora porque estava em jejum do Ramadhan e não queria ficar olhando a comida.
Fomos ao Banco da China trocar dinheiro. $1=7.43 yuan.
Conflito de Culturas
Depois fomos ao túmulo de Apa Hodja, líder local do seculo XVII que foi para o Tibet, descolou um grau de monge e voltou para reinar e cometer um monte de atrocidades. Há divergência na história contada pelos Han-chineses e os uyghur. Segundo os han, lá estaria enterrada a concubina do imperador chinês (the fragrant concubine), então pouco importaria o Apa Hodja. Para os Uyghur, a concubina decidiu espalhar os seus perfumes por outras bandas e jamais foi enterrada lá. Não soubemos direito por que, mas era uma questão importante. Tanto que a placa oficial do local fazia questão de frisar que o governo chinês respeitava a liberdade religiosa e vivia em paz com suas minorias. Falô, então.
Usamos uma placa trilíngüe de No Smoking para aprender a caligrafia árabe e chinesa e um pouco da língua uyghur.
Anwar queria nos levar para ver artesanato numa fábrica de tapetes mas preferimos tomar sorvete. 6 yuan compraram 2 copos com 3 bolas médias cada de um sorvete nota 6.5. Anwar também não chegou perto devido ao jejum.
Começamos às 9h, trocamos mais dinheiro e fomos ao famoso mercado de domingo de Kashgar.
Oração Fria
Depois Anwar me levou para rezar numa mesquitinha. Havia lhe pedido essa oportunidade. Levou-me primeiro a um banheiro público em frente. Avisou que seria mal cheiroso mas necessário. Comparados a uma pessoa do século VIII, ele e eu estávamos assepticamente limpos, mas fomos ao ritual da limpeza. Deu-me um jarro d’água e me mandou a um lugar semi-privativo para lavar as parte íntimas. Depois sentamos num banquinho e mandou lavar os pés. Perguntei se era necessário, porque estávamos atrasados e meus pés estavam limpos. Comandou que sim e obedeci. Lavei também o rosto e ouvi algumas pessoas limparem as vias respiratórias. Um detalhe: o lugar era tão mal cheiroso que só entrar lá já me fazia sentir mais sujo.
Atravessamos a rua, entramos na mesquita e pegamos uma espécie de segundo turno da reza daquela hora. Éramos uns 8 homens rezando num espaço para 15 pessoas. Um homem vestido bem simploriamente parecia dirigir. Durou uns 10 minutos. Ao terminar todos saíram como desconhecidos que eram.
Voltando ao carro, Anwar perguntou-me porque fiz movimentos diferentes dos demais e expliquei que, para mim, foi um pouco difícil ficar ajoelhado. Não estava acostumado a essa posição como eles, e por isso me mexi um pouco durante a reza. Ele disse que não era bom que eu fizesse a minha própria reza.
Essa foi a segunda vez que pratiquei a reza muçulmana. A primeira foi no deserto da Jordânia, indo para Petra, em um silêncio sem fim, com Ashraf, um muçulmano moderno e de cabeça aberta, sem restrições de horários ou dogmas de limpeza obsoletos ao homem urbano do século XXI, e que foi antecedida por ótimas discussões filosóficas inspiradoras. Se aquela vez foi sincera e simples, esta foi mecânica e rebuscada. Se a outra foi ampla e inspiradora, esta foi escura e cheia de graxa. Se aquela foi emocionante e inesquecível, desta vez foi para preencher o tempo.
Tecnorogia Chinesa, né?
Fomos à esquina dos computadores e no subsolo havia uma galeria bem parecida com os Standcenters de São Paulo, mas as divisões entre as lojas não eram claras e todos pareciam vender para todos. Olhei rapidamente algumas lojas e no fim comprei 1 leitor de cartão SD para USB, 1 adaptador bluetooth USB, 1 cartão micro-SD de 2GB para meu Nokia E61i, 1 hub USB 2.0, 1 pen drive de 2GB, 1 adaptador Sony de Memory Stick Duo Pro para Memory Stick normal, 1 HD Hitachi de laptop de 160GB e 1 adaptador USB para o HD, tudo por $156. No Brasil só o HD iria custar uns $250. Foi difícil convencer a vendedora aceitar uma das notas de $20 que estava mais gasta, mas deu tudo certo. Pedi para testarem todos esses storages transferindo um monte de MP3s uyghur e chineses para eles. Intercambio cultural é tão mais fácil nessa nossa era digital.
Dispensamos o Anwar e decidimos comprar tranqueiras no supermercado e comer no quarto. Tínhamos poucos yuan, mas compramos frutas e suco para o café da manha, salgadinho, milho em lata, chocolate e sabonete para não ter que usar o do hotel. No caminho a pé para o hotel, uma vendinha fazia nan (pão) no tandoor. Compramos 1 por 1 yuan. Estava quente, fresco e delicioso. Chegaram no hotel praticamente só as migalhas para contar historia.
Tomamos banho, assistimos TV com filmes nacionalistas chineses, vimos muitas propagandas incompreensíveis mas muito bem feitas e divertidas e 21:30 estávamos dormindo.
Acordamos às 5h bem dispostos. No café nos deram um prato com fatias de salsichão frito, fuzili cozido na agua, um ovo cozido e salada de tomate e pepino. Mais manteiga e pão que no dia anterior já estava velho. Esta, adicionada ao fuzili, ficou ótima.
Caímos na estrada ainda no escuro e dormimos mais um pouco. A paisagem de planícies nuas envolvidas por montanhas ainda era impressionante.
Vez ou outra grupos de animais cruzavam a pista. Cavalos, bois, ovelhas e camelos. Os kyrgyz eram nômades e no último século muitos passaram a ser nômades somente no verão. No inverno voltam das pastagens para suas casas fixas. Fazia frio e os animais corriam provavelmente para se aquecerem.
Conforme a altitude aumentava a paisagem mudava de um pouco nevada a completamente branca.
A certa altura pegamos outra estrada para visitar Torugard que ficava a mais de 4000m de altitude. Um pouso para caravanas do século X ou XI (a mais antiga de toda viagem) no meio de um cenário completamente branco e gelado. Pitoresco. Brincamos um pouco com a neve e tiramos umas fotos.
Hora do Rush
Voltamos para a estrada de terra e dormimos mais um pouco. Estávamos no meio do nada indo para a fronteira com a China. Nada menos que 60km antes da fronteira havia o primeiro posto de inspeção e próximo dele havia uma fila enorme de caminhões-containers voltando para a China.
Quanto mais nos aproximávamos da fronteira, mais intenso era o tráfego de caminhões. Os caminhões chineses eram modernos e coloridos de marcas nacionais e os kyrgyz eram cinzentos e velhos, sempre da marca russa Kama3.
A estreita estrada de terra, mais a neve, mais o trafego intenso, mais os desfiladeiros, faziam a velocidade media ser baixíssima. Constantemente parávamos e esperávamos fora do carro. 200m antes da fronteira um dos caminhões chineses deslizou e bloqueou a pista. Mas depois de muito trabalho conjunto de outros caminhoneiros, inspirados pelo boneco de neve da Tati, ele conseguiu sair.
Chegamos na fronteira umas 13:30 e ficamos sabendo que outro caminhão deslizou no lado chinês. Isso era especialmente ruim porque só atravessaríamos se o nosso novo guia conseguisse chegar da China para nos pegar. Trocaríamos de condução também. Não sabíamos quanto tempo ele iria demorar, não dava para telefonar.
A fronteira não passava de uma cancela de ferro mais uma casinha no meio de um grande nada de montanhas nevadas. Alfandega e burocracia ficavam, vários kilometros antes e depois. Era sexta-feira e o posto fecha no final de semana. Se o guia chines não aparecesse teríamos que passar o final de semana arrumando o que fazer no Kyrgyzstan. Nossa última refeição foi às 5:00 da manhã e por sorte a Natalia trouxe um tipo de balas duras de queijo seco, salgado e coalhado, típicas dessa região, que ficamos chupando para enganar o estômago agonizante.
China Ma Non Troppo
Antes das 15h nosso guia chegou. Despedimos de Natalia e Sacha (que iriam passar mais algumas horas de mal retorno antes de conseguir almoçar) e trocamos a van por um carro sedan urbano.
Anwar era nosso novo guia. Homem simples, simpático e falava um inglês bem razoável. Apresentou-nos ao Mr. Ma, o motorista, dinâmico, veloz, muito comunicativo apesar de ser enorme e não falar uma palavra em inglês. Ambos tinham os olhos muito pouco puxados, eram chineses de nascimento mas de minorias uyghur (Anwar) e hui (Mr. Ma).
Viajamos por longos e estreitos 87km de estrada de terra, boa parte com neve e caminhões parados. A neve ia sumindo conforme descíamos, e a paisagem deste lado da cordilheira era completamente diferente. As rochas apresentavam um tipo de erosão escultural e tinham muitas cores. Fomos constantemente beirando um rio que ao longo dos milênios formou um canion cortando as montanhas de geologia moderna. Em épocas de cheia sua largura era de ate uns 100m mas a julgar pelo muri da estrada, não chegava a 2m de altura. Mas nessa época do ano não passava de um córrego que deixou um leito seco e infértil de cascalho.
A paisagem humana do lado chines é igual: kyrgyz criadores de ovelhas, cavalos, camelos, moradores de yurts e semi-nômades.
A estrada virou um bom asfalto logo antes do posto da alfandega (87km depois da fronteira, mas em uma região menos insólita). No posto tivemos que descarregar, preencher uns formulários, apresentar passaportes. Ônibus e caminhões de mercadores uyghur, kyrgyz ou sabe-se lá o que iam para a China carregadíssimos de tapetes e outras mercadorias. Eles furaram a fila algumas vezes. Havia também um free shop ali que vendia principalmente bebidas e cigarros. Todos os fardados eram etnicamente chineses, apesar daquela região ser dominada por outros povos.
Passamos a alfandega, recarregamos o carro e fomos atacados por cambistas. Despistamos todos. Em breve a estrada se transformou em duplicada e os 80km restantes passaram rápido. Fizemos os 170km em pouco mais de 3 horas.
Uma Beleuza de Hotel
Nos levaram ao hotel Seman que Anwar tratou de orgulhosamente vender como excelente e de propriedade de um uyghur. A recepção era iluminada com poucas lampadas fluorescentes de padaria, o que tornava tudo meio esverdeado. Mas isso era fichinha perto da decoração com espelhos fumê e temas floridos em alto relevo de gesso colorido coberto de purpurina que dominavam as paredes e teto. Um calafrio subiu pela espinha. O chão do refeitório era lavado tipo 2 vezes por mês e o banheiro era tão mal cheiroso quanto um banheiro público.
Sobre o quarto, motéis de beira de estrada eram mais bem decorados para nossos padrões ocidentais. Encheram as paredes com os tais gessos coloridos pintados de dourado em algumas partes. Tivemos que mudar de quarto porque o primeiro estava completamente empregnado de cigarro. A banheira era desnivelada, o chuveiro molha todo o banheiro, não davam tapete para o chão, o sabonete era muito mal cheiroso, forneciam só ½ rolo de papel higiênico por vez, os azulejos eram mal remendados e uma placa de plastico mal pendurada sob a pia escondia o encanamento. Não dava para juntar as camas, os móveis eram velhos e riscados, não havia onde colocar e abrir as malas, não há onde pendurar toalhas usadas e as cortinas eram das mais vagabundas. Ainda por cima o quarto era no 3° andar e não havia elevador. Só não dava para dizer “não é 3 estrelas nem aqui nem na China” porque estávamos na China.
Povo Uyghur 360°
A hospitalidade de Anwar se sobrepôs a sua sensibilidade para entender que estávamos há 2 dias viajando assados e sem banho e nos convocou para jantar em 10 minutos.
Ele nos levou a um restaurante de comida uyghur atravessando a rua. Era tudo que nossos intestinos sofridos não precisavam naquele momento. O hotel me deixou nervoso e descontei boa parte no doce Anwar que não tinha nada a ver com isso.
O restaurante tinha a mesma decoração do hotel com o acréscimo de muita fumaça no ar. Mas a comida estava ótima. Ele pediu um ótimo lámen vegetariano leve e sem pimentão para mim e um mais caprichado para a Tati. E mais vagens com pimenta e gergelim, uma salada de cenoura, pimentão e pepino bem apimentada e outra que tinha base similar mas com menos pimenta e mais cominho, e também um prato de pepino fatiado que refrescava os outros ardidos. Veio também uma verdura que parecia um hibrido de acelga e cebolinha cozida com algum cogumelo que parece alga, e estava bem ardido. Destaque para o chá, de aromas bem mais complexos que o insosso verde dos dias anteriores, com cardamomo, cravo, açafrão, jasmim e outra especiarias.
Estimulado por nossa curiosidade, Anwar contava orgulhosamente sobre a região, a sociedade uyghur e como era sutilmente oprimida pela maioria chinesa do pais. Os uyghur são muçulmanos e etnicamente parecidos com os uzbekes e persas. Sua língua é também similar, e usam o alfabeto arábico. Contando, temos as línguas uzbek, kyrgyz e uyghur todas muito similares e derivadas do turco, mas usam o alfabeto latino, cirílico e árabe respectivamente. Uma salada etimológica.
O doce Anwar era um resultado confuso de antigas tradições, regras para um mecanismo social que deixou de existir e costumes vencidos. Um abismo de gerações isolado em sua cultura parou de perguntar o porquê de tudo aquilo e ao longo dos seculos a ação desprovida de pensamento transformou tudo em leis sagradas inquestionáveis. Essas mesmas características são encontradas em qualquer sociedade religiosa fechada e secular, como a judaica e outras.
A discriminação faz os uyghur se voltarem e valorizarem mais ainda suas tradições. Era o islã menos aberto de toda a viagem. Anwar contou que teve um casamento arranjado pela família, que tinha antes uma namorada que gostava muito e demorou para responder se gostava da atual esposa. Mesmo assim contou com orgulho como os índices de divórcio eram mais baixos entre os uyghur. Com altivez ingenua disse que deserdaria o filho se ele se casasse com uma chinesa, kyrgyz ou americana. Seu ponto era que tinha que ser muçulmana. Mais ou menos, porque kyrgyz e khazaks (de traços mongois) também são muçulmanos mas foram rejeitados de sua lista de namoradas ao filho, que continha uzbekes, tajikes e outros grupos persas.
Uma pessoa menos religiosa, talvez menos vitima da sociedade ou de uma sociedade mais aberta, e que tem parâmetros de outras culturas acaba fazendo simples perguntas que deixam pessoas como Anwar sem resposta e talvez sem chão.
Depois do jantar finalmente tomamos um longo banho e fomos dormir assistindo TV sem entender nada, mas achando um barato. Estava passando o filme Alexandre O Grande, bem conveniente para nossa viagem.
Após uma ótima noite de sono, acordamos dispostos, tomamos café junto com um grupo de Singapura. Esperamos a Natalia e caímos na estrada.
Dormimos um bom pedaço da estrada até chegarmos em Koshkor, uma pequena vila onde iríamos almoçar.
Chegamos a uma guest house onde haviam vários turistas assistindo uma viva mulher fazendo artesanato com lã.
No quintal da casa haviam vários yurts para turistas. Antes visitamos a loja de artesanato onde haviam vários artigos de lã e feltro, provamos vários chapéus típicos, tentei tocar os instrumentos de corda e a Tati acabou levando um camelo de lã para o Thomas.
Entramos os quatro para almoçar no yurt. Haviam várias geleias na mesa e o melhor pão da viagem até agora. Provamos também umas frituras com gosto de nada que vimos vendendo por kilo nos bazares.
Uma senhora trouxe uma chaleira antiga chamada samovar que mantinha a agua para o chá quente, transferia para uma chaleira menor e de lá servia para cada um.
A entrada foi uma salada de cenoura com massa de arroz em formato de tagliarini, temperada com balsâmico e algo mais. Depois veio uma sopa de batata, cenoura e outros legumes com um pouco de carne, temperada com bastante dil. E o prato principal eram legumes cozidos com carne, mas até ele chegar nos empanturramos com tanto pão que só deu pra provar.
Ficamos conversando com a Natalia sobre a vida dos jovens, línguas, telecomunicações, e varias outras coisas.
Saímos para caminhar na pequena vila, ver os mercadores e tirar umas fotos de pessoas. E caímos na estrada novamente.
Planícies Nuas, Montanhas Bicudas
Sempre viajávamos por planícies muito amplas e nuas cercadas por montanhas pontudas por todos os lados. Havia neve no pico de muitas delas. A terra é bastante pobre e rochosa. Pouquíssima gente vivia ali, a agricultura já tinha sido colhida para a chegada do inverno. Agora, só havia feno para colher. A Natalia falou que o povo kyrgyz era tão nômade que tiveram que criar associações locais para ensiná-los técnicas de cultivo e de construção de casas.
Víamos muitos grupos de carneiros, cavalos e gado pastando ou sendo levados pelos pastores. É que no começo do outono, com a chegada do frio, eles descem a montanha com seus rebanhos e vêm para lugares mais quentes. Por isso, também vimos na estrada yurts desmontados sendo transportados em caminhões.
Diferente de nossas paisagens, os rios evoluíam nus, sem nenhuma vegetação escondendo sua passagem cristalina. Planícies vastas, montanhas ao longe e rios a céu aberto conferiam um tom de paraíso a toda a cena.
No fim da tarde chegamos em Naryn, uma cidade um pouco maior que a vila do almoço. Entramos numa guest house chamada Celestial Mountains e iriamos dormir num yurt mas nos deram o quarto da TV onde transformaram 2 sofás em camas, tinha bastante espaço, TV, DVD e vários filmes. Mas a empolgação durou pouco ao vermos que todos os filmes eram piratas e falados em russo. Os chuveiros, privadas e pias eram comunitários mas limpinhos. E haviam muitos outros turistas ali, principalmente holandeses.
Umas 18h metemos uns jaquetões pela primeira vez na viagem e fomos caminhar com Natalia pelas ruas de Naryn. Vimos escolas, crianças, prédios de aparamentos em condições ruins, praças, monumentos, casas de chá e vendas. Numa delas comprei um bom picolé por 10 som, menos de 1/3 de dólar. Tive que esquentá-lo no bolso por um tempo antes de abrir porque estava muito duro.
Voltamos umas 19h para o alojamento, bem na hora do jantar, e ouvimos outras pessoas já sentadas à mesa. Deram-me uma salada de pepino e tomate no lugar de uma maionese com carne, depois sopa vegetariana no lugar da sopa com carne, e arroz branco simples e puro no lugar do arroz com frango para os outros.
A luz piscou, acabou e voltou diversas vezes durante o jantar até que trouxeram velas. E todos se divertiram com isso.
Marcamos tomar café às 5:30 no outro dia, e depois do jantar já fomos direto para o quarto para não sair mais.
Pousamos umas 3 da manhã com um pouco de dor de cabeça pelo barulho das turbinas do avião russo.
O aeroporto de Bishkek (FRU) consegue ser mais organizado e prestativo no meio da madrugada do que o de Tashkent no meio do dia. O visto saiu rapidinho, havia fila organizada para os passaportes, vários agentes atendendo e as malas vieram rapidamente. As instalações pareciam melhores também.
Encontramos Natalia, nossa guia para os próximos dias, no meio de uma multidão de taxistas e carregadores oferecendo serviços. Pequena, clara, de nariz arrebitado e cabelo muito curto. Tanto que quase parecia um rapaz afeminado. Falava inglês bem e com pouquíssimo sotaque.
Viajamos os 40km até Bishkek em rodovia duplicada e bem sinalizada. A primeira impressão era de um Kyrgyz que se esforça mais que o Uzbek para andar para frente. Bishkek de madrugada parecia uma cidade europeia com avenidas largas e arborizadas.
O hotel era uma casa grande estilo montanhês, decorado com muita madeira crua, belos quadros, rochas, ambiente familiar e é a sede do International Trekking Center do Kyrgyzstan. Todos eram russos, não pediram passaporte para o check in e a burocracia foi quase zero. Marcamos para 10:30 e fomos dormir um pouco.
Nas Alturas
Acordamos antes do despertador. Depois do banho descemos para o café bem adiantados. Cereais bons, ovos cozidos e recheados com ervas, pães meio velhos, saladas de beterraba, de couve flor, pepino, tomate etc e música francesa meio brega. Chanson française mesmo.
Catamos a Natalia no escritório da Asia Mountains no porão do hotel e caímos na estrada antes da hora marcada.
A cidade de dia era bem movimentada e tinha trânsito. A variedade de carros era bem maior que a dupla Daewoo-Lada do Uzbekistan porque traziam carros importados do Japão. Isso também garantia carros com direção no lado direito que estavam sendo proibidos recentemente.
Todo nosso orgulho de termos começado mais cedo o dia foi por água abaixo quando descobrimos que o fuso horário havia mudado. Então o que achamos ser 10:15 da manha era na verdade 11:15.
Na saída da cidade passamos por um bairro de casas grandes e aparentemente caras. A paisagem estava ficando mais campestre e começamos a avistar uma cordilheira altíssima lá longe. Em certas partes havia córregos de águas cristalinas acompanhando a estrada que já era só subida.
Já penetrando numa cordilheira entramos num parque-reserva com seguranças na porteira. Estacionamos perto de um grande chalé que era um hotel e fomos caminhando.
Céu azul se misturava com nuvens esparsas que se moviam rapidamente. Estávamos na abertura de uma garganta cercada por montanhas altíssimas de rochas pontudas que alcançavam 4000m: Ala Archa. Em algumas delas via-se neve. Para nós brasileiros era uma paisagem completamente nova e de tirara o fôlego.
O começo da trilha era asfaltado beirando um rio de uns 4m de largura, de águas rápidas e cor opalina que abriam seu caminho entre as rochas. O branco da água ficava marcado nas pedras com a decantação de minerais. Esse rio era um dos que abasteciam a cidade e haviam pessoas fazendo picnics em alguns pontos.
O asfalto logo terminou e foi substituído por trilhas de terra cercadas de pinheiros de natal e outros arbustos. E também por grandes trechos de rochas que deslizaram montanha abaixo como se fossem rios. Em alguns pontos dessas formações pudemos ouvir agua passando por baixo das pedras.
Era só subida e a paisagem foi ficando mais ampla. A pura visão de um paraíso perdido. As montanhas não eram muito verdejantes. Quanto mais alto menos arbustos tinham, até rocha nua se mesclar com neve. Depois de mais de uma semana de pó e construções religiosas medievais, ver tanta natureza era um alivio para nossas mentes e pulmões.
De repente uma surpresa: começou a nevar! Até Natascha ficou surpresa por ainda ser muito cedo no ano para isso. Mas durou pouco e foi substituída por chuva que também passou rápida.
Continuamos subindo garganta a dentro conversando com Natalia desde politica e sociedade até música e sotaques. Ela era séria, de pouca prosa, mas uma boa moça.
Já mais de 14h, paramos para almoçar os sanduíches, pepinos e maçãs que Natascha trouxe. A paisagem era tão vasta que ofuscou a avançada idade do pão e a questionável qualidade do queijo. À frente da trilha avistamos a cachoeira mirrada que comia a rocha verticalmente.
Era tempo de começarmos a voltar. Essa história de que para descer todo santo ajuda não é bem verdade. Vários trechos escorregadios exigiam muito mais concentração. Se subimos cantarolando e conversando, a descida foi em silêncio, focada nos passos e no chão. Mas depois de certa altura voltou a ficar fácil e chegamos em baixo bem.
Entramos na van com e mente limpa e descarregada, graças a paisagem e o foco na descida, e por isso apagamos quase imediatamente, até chegarmos no hotel. Subimos ao quarto e ficamos lá ate nos chamarem duas vezes para jantar umas 19h.
O jantar foi enervante. Salada de repolho, pepino, pimentão, um pouco de tomate e muito óleo para entrada. As pessoas não aprendem que pepino não combina com repolho e que pimentão só serve ao consumo humano sem a pele que é celulose pura e indigesta. Mas isso não foi o pior. O prato principal continha uma versão quente da mesma salada, inclusive o pepino, mais um purê insosso de batata. Supernutritivo. A Tati recebeu um sobrecoxa frita requentada. Que imaginação essa gente tem para culinária! A sobremesa eram uns crepes já frios com mel, que estavam bons graças ao mel.
Centro de Bishkek
Um chá de jasmim depois, resolvemos ir conhecer a cidade. Elnura, a recepcionista simpática e sorridente, nos explicou como ir e voltar ao centro de taxi, com nomes de ruas e direções por escrito. Trocamos também $15 com ela, por 37.34 som por cada dólar.
Ela chamou um taxi que nos levou ao centro. Para pagar, assim que chegamos perguntei quanto custou a corrida com um gesto. Não entendi nada do que ele disse mas lembrei que Elnura informou que custaria 75 som. O radio do carro sintonizava 107.4 MHz e apontei para o 7.4 que lembra 75. Ele entendeu, concordou, pagamos e pulamos fora. Quem não se comunica se estrumbica.
No centro havia grandes edifícios públicos, praças e muita gente batendo perna ou de bobeira. Havia karaokês, bares e buracos vendendo sanduíches de churrasco grego que chamavam de Гамбургер (Gamburger).
Caminhamos sem destino e devagar, testando nosso conhecimento do alfabeto cirílico. Passamos por floriculturas, lanchonetes, casas de câmbio. O trânsito era caótico e dirigiam como loucos.
Uma hora depois pegamos um taxi que nos levou ao hotel com a ajuda das anotações da Elnura por 70 som e fomos dormir.
Levantamos umas 7:30 e procedemos ao café. A única coisa diferente que provamos foi o iogurte que não parecia ser industrializado. Era bom e bem gordo, quase uma manteiga. Nunca provei algo assim.
Fizemos check out e nos despedimos de Umid que fechava seu turno de 12 horas. Encontramos Nina recepcionando um grupo de turistas e observei que estava com a mesma roupa elegante mais um blazer típico por cima.
Encontramos Sacha às 9h e caímos na estrada ouvindo música russa. Era a primeira rodovia duplicada que vimos, apesar de alguns trechos serem bem ruins, outros novos mas sem nenhuma sinalização no chão etc.
Iríamos direto tomar o vôo para Bishkek às 17h, mas ligaram para Sacha avisando que foi adiado para 2:30 da manhã! Ele nos levou então ao já conhecido e confortável Uzbekistan Hotel.
Não paramos para almoçar na estrada. Só Sacha comprou uns peixões do rio Syr Darya que pescavam clandestinamente e vendiam em pontos de ônibus na estrada.
Pindura
Chegamos quase 14h no hotel, mortos de fome. Depois de formalidades no banheiro, decidimos ir a um italiano chamado Bistro que no guia dizia ser bom e caro.
A caminhada até lá foi relativamente longa. Sentamos fora e era bem agradável. A garçonete disse que os pratos eram grandes, mas não foi o que achamos. Dividimos uma salada de alface, (sim, isso existe aqui!) tomate, cebola e atum em molho balsâmico e depois um ravioli bem recheado de espinafre com molho napolitano. Estava tudo fresco e muito bom. A Tati tomou um chá gelado com um monte de frutas e eu um suco de maçã com cenoura, muito refrescante. Para a sobremesa Tati foi de crepe de chocolate com sorvete de amora e eu de torta quente de maçã com laranja e geléia de framboesa. Foi a conta mais cara: 30700 sum ou $25. Não tínhamos sum suficientes, não aceitavam cartão de crédito, nem notas de $1, $5. Só de $10 e $20, coisa que não tínhamos. Para as de $50 e $100 dariam troco em sum, coisa que não nos servia para o último dia no país.
Então eu fiquei de garantia e a Tati saiu para trocar dólares. Voltou uns 45 min depois e só conseguiu trocar no nosso hotel mesmo. Nenhum banco. Nesse ínterim já estava começando a fazer amizade com as garçonetes.
Voltamos ao hotel a pé pelas largas e arborizadas ruas da cidade. A idéia era ir na ópera mas não sabíamos o horário e programação e precisávamos tratar de uma passagem com o Brasil pela Internet. Ficamos a ver e-mails e falar no telefone até umas 18:30 e quando descobrimos que a apresentação era às 18h, desistimos e fomos descansar no quarto até umas 23h.
Descemos uma 23:45 e checamos os últimos e-mails pelo celular no ponto WiFi público do saguão, provavelmente o único do país.
O Topolev Russo
Sacha nos levou ao aeroporto e nos despedimos porque não deixaram ele entrar. Era burocrático e precisávamos passar por um tipo de inspeção financeira na alfândega além do check in. Coisa de economia frágil.
Algumas carimbadas e raios-x depois, estávamos no portão de embarque. O avião era uma lata velha russa modelo TU-154Б e estava cheia de israelenses que encontramos em todas as cidades pelo caminho. Os acentos eram marcados com Α, Б, В, Г, Д, Е, e não A, B, C, D, E, F que estamos acostumados.
Férias é bom e a gente gosta. Gosta muito. Acordamos meio cedo, tomamos banho, café reforçado e… dormimos até às 11h.
Saímos andando até o museu de história que ficava em frente ao Registan Square. Ia começar a ICT Expo 2007 ali no dia seguinte e montavam os stands. IT no Uzbekistan de hoje se reduz a 15 stands de empresas de telefonia celular e nada mais. Havia stands que mostravam em letras grandes “CDMA”, coisa que o Brasil quer se livrar rapidamente, por ser proprietário, e trocar pelo padrão aberto GSM que tem mais fornecedores de equipamentos e por isso os preços são melhores.
Por 2500 sum por pessoa ingressamos no museu. Englobava história de Samarqand e do Uzbekistan em geral desde a era do bronze até o século XX. Tinha cerâmica, metais, murais, azulejos, esculturas, afrescos, mosaicos, roupas, e referências a povos e costumes. Apesar das hilárias legendas em inglês, o museu estava bem montado e agradável.
Estava surpreendentemente vazio, tipo ninguém mesmo, nem mesmo os franceses que encontrávamos o tempo todo.
Uma parte do museu estava completamente no escuro. Talvez porque o yurt exposto ali não tenha pago a conta de luz. E havia mulheres tomando conta que dividiam seu tempo entre comer, rezar atrás de umas cortininhas e vender artesanato dentro do museu !
Bozori !
Do museu pegamos a rua que dava no Bazar. Estava meio vazio porque segunda o bazar não funciona completamente. Os feirantes faziam marcação homem-homem para oferecer suas nozes, frutas secas, haleua, doces fabricados, belos blocos de cristal de açúcar de uva, marshmellow. Na área de pães vendia-se pães e nada mais. Na de verduras e legumes havia cebolas, pimentões, tomate, pepino, repolho, beterraba, cenoura, coentro, dil, mas nem sinal de folhas verdes como alface ou rúcula.
Uma mulher vendia algo amarelo e molhado numa bacia. Olhei intrigado e entendi ela dizer que era figo enquanto já oferecia um para provar. Era de fato um figo bom de um tipo amarelo que nunca tinha visto. Agradecemos e fomos saindo quando fez com os dedos o sinal universal do dinheiro apontando para o figo que tinha dado. Aquilo não parecia correto mas perguntei quanto. Tirou um bloco de dinheiro do bolso e mostrou uma nota de 500 sum. Viramos e fomos embora nervosos. Que mania de querer se aproveitar dos turistas! É o tipo de coisa que estraga o resto do dia, igual ao sorvete do dia anterior.
A Tati comeu um somsa bem bom por 300 sum e eu um picolé de mesmo valor, que no dia anterior nos cobraram 1500 sum !
Passamos pela parte de packaged consumer goods da feira e entramos em lojas que vendiam tecidos sintéticos de baixa qualidade.
Voltamos ao Registan Square pelo mesmo caminho e paramos numa casa de chá em frente para um chá verde por 300 sum.
As mulheres na rua freqüentemente vestem a mesma roupa. As vezes é porque os uniformes (hotel, lojas, padarias) parecem, para nossos olhos destreinados, uma roupa como outra qualquer, mas usada por todos igualmente. Mas desconfio (Tati) que eles têm uma quedinha por uniformes ou pelo uniforme, porque várias meninas vestiam-se também de maneira idêntica e todas as crianças da escola são uniformizadas. Até as árvores são uniformizadas: elas usam aquelas meias branquinhas de cal, para afastar os insetos…
Cidade Nova
Então decidimos ir para a parte nova da cidade por caminhos alternativos. Entramos por um bairrinho que logo se transformou numa favela a beira de um rio. Miséria é miséria em qualquer canto. Não havia uma alma viva nas ruas.
Saímos atrás de uns edifícios que pareciam públicos, e bem perto do nosso hotel. Era a parte soviética (nova) da cidade. Subimos a bela avenida da universidade, entramos por suas arborizadas e amplas travessas. Gente andando nas ruas ou vendo a vida passar, crianças saindo da escola, teatro infantil, confeitarias e atmosfera agradável. Entramos num parque e acabamos saindo numa região comercial com boutiques do interior, pedestres, avenidas movimentadas.
Jantar de Turista
Umas 17h nos enchemos e pegamos um taxi que por 1000 sum nos levou ao hotel.
Assistimos um pouco de TV, só havia uns 3 canais. Arrumamos as malas e tomamos banho.
Na recepção conhecemos o Umid que havia morado 3 anos em Portugal e falava um ótimo purtuguéish. Ele nos ajudou com detalhes do hotel. Havia também uma loja de roupas e coisas típicas que vendia por $500 a mesma roupa que vimos na loja da amiga da Nina por $100, no dia anterior.
Jantamos no hotel mesmo. O refeitório estava cheio de turistas. Por $12 por pessoa (caríssimo para o Uzbekistan), num esquema self-service, tivemos um dos melhores jantares da viagem, com várias opções vegetarianas provavelmente devido a demanda dos turistas europeus. Sopas, saladas, panquecas, arroz, tudo bem temperado.
Como o hotel aqui é muito parecido com o de Bokhoro, achamos que iam ser tão chatos quanto eles quanto ao horário do café. Chegamos às 8:50 e vimos uma bela mesa. Nos servimos rápido de frutas, panquecas com queijo, geleias e chá verde. Para nossa surpresa nos esperaram terminar e não tiraram a mesa.
No saguão nos esperavam Sacha e Nina, nossa guia. Era uma ucraniana de meia idade, cabelos pretos, olhos e sorriso grandes. Vestia roupas em estilo persa-moderno e apetrechos que combinavam bastante. Veio ao Uzbekistan fazer uma especialização em história da região, trazendo sua paixão pelo assunto, e acabou ficando por aqui. Esse seu lado intelectual somava elegância e veracidade às roupas, e o resultado final era uma mulher doce, atraente e equilibrada.
O primeiro lugar que nos levou foi impressionante. Ulug’bek — neto de Timur — foi um rei do século XV que incentivava as ciências e construiu um observatório de estrelas que fomos visitar. Contribui para o desenvolvimento da astronomia e fez medições bastante precisas de tamanho da Terra, distância a estrelas, e duração do ano. Buscava a fusão da fé e do saber. Sua época ofuscou o fanatismo religioso e transformou Samaqand na capital asiática da ciência. Mas foi infelizmente morto pelo filho ciumento e de tendências fanáticas.
Fanatismo Novo
Depois passamos pela necrópole onde havia mais mesquitas e túmulos com influência zoroástrica.
Ao longo do dia visitamos diversas mesquitas e madrassas. Samarqand tinha realmente porte de capital a julgar pela suntuosidade de suas construções. Nina explicava com bastante propriedade muitos aspectos históricos, geográficos, arquitetônicos, culturais e tradicionais do povo e a relação com a antiga religião zoroástrica que dominava a região antes do islã chegar. Foi nossa melhor guia até agora.
Religião lhe interessava muito e contou como muitos peregrinos seguiam sua fé até Samarqand, como uma pequena viagem ao invés de irem a Meca, e beijavam e adoravam elementos sem saber o que significavam ou que não tinham nada a ver com sua religião, como o observatório astronômico de Ulug’bek.
Havia falado que gostei de suas roupas então nos levou ao atelier de sua designer favorita. Tati acabou levando uma bela saia toda bordada.
Fomos almoçar num bom restaurante na cidade nova. Comemos saladas e conversamos sobre tudo. Queríamos tirar o máximo da cultura e experiências de Nina.
Fomos caminhando pela belíssima e arborizada avenida da universidade em direção ao Gur Emir. Vimos os túmulos de Emir Timur, Ulug’bek e outro heróis nacionais. Alguns peregrinos irracionalmente adoravam também aquilo, contou Nina.
Na saída, depois de usar o banheiro, pedi a Nina que perguntasse porque cobravam 200 sum para usá-lo se não cuidavam, não limpavam, não havia água e não repunham papel. A resposta da funcionária foi vaga.
Registan
Caminhamos por um bairro antigo de ruas apertadas até o Registan Square, ponto máximo de Samarqand. No caminho compramos picolés de valor altíssimo. Com certeza fomos explorados e isso afetou negativamente o resto do dia.
O Registan era composto por 3 construções muito suntuosas e bonitas, erguidas entre os séculos XV e XVII. Uma mesquita, uma escola de música e uma madrassa construída por Ulug’bek com inscrições nada religiosas exaltando o saber.
Já eram quase 18h e Nina nos acompanhou até o hotel. No caminho vimos um homem fazendo somsas nas paredes de um tandir (forno).
Ela contou mais uma história de Khodja Nasredin, esperou o marido chegar, nos despedimos e foi embora.
Subimos ao quarto, não fizemos mais nada e dormimos cedo.
A claridade da alvorada ia entrando pelos pequenos buracos do yurt, mas isso não incomodava o conforto de dormir lá dentro. No café serviram panquecas finas, um algo delicioso entre geléia e compota de damasco, chá verde e outras coisas.
Fechamos as malas, largamos na van e os camelos de duas corcovas já estavam a nossa espera. Tarkan foi guiando os camelos a pé enquanto cantarolava algo. Era um sobe e desce morro sem fim, com paisagem homogênea e bela para todo ângulo que se olhasse.
No fim da jornada chacoalhadíssima de ±1h, avistamos o lago Aydarkul e um pouco mais adiante nos encontramos com Sacha e despedimos de Tarkan e seus camelos.
Depois de se perder um pouco, Sacha nos levou à beira do lago de águas cristalinas e menos salgadas que o mar. Precisávamos de mais poucos graus de calor para entrar de corpo e alma, mas o ligeiro frio convidou só os pezinhos. Caminhamos pela praia do deserto cuja areia era ainda mais fina e macia que as das praias brasileiras. Havia arbustos completamente cobertos por sal.
O mesmo cozinheiro dos yurts armou uma tenda perto da praia para servir um almoço só para nós. Tomate, pepino (mas sem faca para cortá-los), peixe frito, pão e uvas e melancia para sobremesa. Chá verde como sempre.
Civilizátsya a Caminho !
Caímos na estrada. Aos poucos iam surgindo montanhas na paisagem ainda desértica. Num trecho viajamos por uma planície paralelos a uma cordilheira que subia abruptamente. Um cenário singular.
A estrada era de um asfalto velho ou ruim exigindo muitas vezes desviar dos buracos em baixa velocidade, e não permitia passar dos 80km/h.
Paramos numa pequena cidade que Sacha não sabia o nome, compramos picolé muito barato e bom e ficamos olhando os artigos da venda: muito chá, cereais e macarrão a granel, barras de açúcar de uvas que parecia um cristal bem formado da cor da polpa dessa fruta. Compramos sabão em pó para lavar a roupa.
A paisagem ia ficando verdejante conforme nos aproximávamos de Samarqand e chegando lá Sacha nos deixou no hotel Afrosiyob lá pelas 16h. Xush kelibsiz !!!
Subimos ao quarto, tomamos banho e depois usamos a banheira para lavar a roupa. Ela soltou muito pó que foi pelo ralo. Deixamos secando sobre o ar condicionado e na varanda do quarto. Até a manhã seguinte as roupas estavam secas.
Internet e Jantar no Irã
Um pouco antes de escurecer saímos para transferir as fotos para CDs e comer algo. Depois de perguntar e andar bastante, achamos uma LAN house que gravou nossas fotos em 3 CDs. A Tati ficou na Internet enquanto isso, e tudo saiu por 3400 sum, bem melhor que os $5/hora do hotel, só para Internet. No espaço que sobrou no último CD, pedi ao rapaz da LAN house preencher com MP3s de música uzbek tradicional. Intercambio cultural é tão mais fácil nessa nossa era digital. Ganhamos uns 400 MB de algo que deve ser o Chico Buarque do Uzbequistão, segundo sua descrição.
O rapaz também sugeriu um restaurante chamado Istiqlol e nos metemos num taxi para chegar lá. Só esqueceu de dizer que não seria fácil para turistas. Nem amigável para vegetarianos. Todas as mesas ficavam em quartos privados fechados por cortinas e separados dos outros quartos por paredes de 2m de altura. Não se via ninguém mas ouvia-se bem suas conversas e seus cigarros impregnaram nossas roupas.
Tinham cardápios em farsi e em russo, inúteis para nós. Foi provavelmente o pedido mais demorado, mímico e trabalhoso que o garçom que mal falava inglês tirou. E foi baseado em coisas que conseguimos nos entender com ele, e não tanto no que realmente estávamos a fim de comer. Resumindo: “green and tomato salad”, “vegetarian soup”, “chicken kebab”. Foi divertido. Depois descobrimos que esse era um restaurante iraniano e que não era muito bom.
Acordamos às 7h, começamos com as malas e desta vez descemos cedo para o desjejum. Foi meio difícil arranjar mesa e no fim acabamos dividindo com duas israelenses. As frutas estavam realmente extasiantes.
Fechamos as malas, fizemos check out, encontramos com Sacha e caímos na estrada.
Horas dormidas depois Sacha parou numa fábrica e museu de cerâmica. Vimos o processo de artesanato da cerâmica desde a trituração do barro com moinho movido a burro até o torno mecânico.
Estava cheio de turistas comprando tudo. Eu também comprei um blusão de algodão crú decorado com seda por $30, depois de pechinchar pacas.
Mais algum tempo dormido depois, entramos no deserto, mas tinha uma aparência diferente do outro. Este parecia mais arenoso.
Em Navoy de repente uma loiraça entrou no carro. Svetlana seria nossa guia para Sarmish e Nurata.
Vimos ao longe uma usina. Perguntei se era atômica, e Sacha respondeu com um belíssimo “this in atom Uzbekistan no”. Quase todas as suas frases começavam com “this”. Um barato.
Petróglifos e Águas Cristalinas
Pegamos uma estrada deserto a dentro e paramos numa pequena ilha de rochas escuras na região de Sarmish. Escalamos um pouco as pedras e Svetlana mostrou os petróglifos, desenhos de camelos, caravanas, bodes cabras, homens em várias rochas. Foram feitas desde a Idade do Bronze (3000 AC) até a idade média. Pareciam ser um tipo de sinalização para as caravanas que passavam exatamente ali.
Em Nurata, almoçamos numa guest house que é uma espécie de restaurante sem cardápio. Trata-se de uma casa bem ajeitada com vários cômodos e jardim. Havia também uma lojinha, claro. Serviram saladas sem folhas, sopa de repolho e cenoura amarela, e plov. Melancia, amendoins e uvas secas para sobremesa.
Sacha gostava muito de Svetlana porque ela era de linhagem russa e bonita. Conversamos um pouco mais com ela que tinha um inglês relativamente fraco.
Na saída esperavam por nós umas meninas de 12 anos com roupa de escola. Quase que profissionalmente pediram que tirássemos fotos com elas e já tinham seu endereço escrito em francês em pedaços de papel decorados com florzinhas que elas mesmas desenharam.
A cinco minutos de lá ficavam as Fontes de Chashma onde o genro de Maomé teria batido o cajado para tirar água das pedras. De fato havia uma grande piscina com água limpíssima cheia de peixes que Svetlana contou serem venenosos e por isso ninguém os pesca.
Alexandre o Grande achou esse poço e construiu uma torre lá perto, que vimos somente as ruínas.
Despedimos de Svetlana em algum lugar na estrada e continuamos para o pouso yurt alguns kilometros dali.
Plantação de Yurts no Silêncio
Plantaram no meio do deserto uns 10 yurts. Cada um tem uns 4 ou 5m de diâmetro, inteiro acarpetado, com estrutura de madeira e coberto com algumas camadas de um grosso tecido rústico de lã. As camas eram futons no chão e recebem umas 5 pessoas confortavelmente. Os yurts estavam distribuídos num círculo e no centro havia preparação para uma fogueira. Ducha, casinha e refeitório ficavam alguns metros fora do círculo dos yurts em lados opostos.
O silêncio do deserto era a primeira coisa que chamava a atenção. Durante um chá da tarde testamos a quantos metros podia-se ouvir um sussurro. Então saímos para caminhar um pouco deserto a dentro para ouvir o som do silêncio. E se o silêncio está sempre presente no deserto, também está o vento. Parece que o capitão Rodrigo vai chegar galopando (num camelo?) a qualquer momento.
Kaljan no Tear
Ao voltarmos, Sacha perguntou se queríamos ir a uma vila a 10 minutos dali. Brinquei dizendo que sim se houvesse sorvete. Na única venda da vila, Sacha traduziu os dizeres da dona: “this in ice cream no”.
Dongelek era uma vila pequena e pobre erguida bem no meio do nada. Suas casas simples eram bem espalhadas com muita areia entre elas.
Sem muito o que fazer naquele fim de tarde, caminhamos ao léu bem devagar e vimos perto de uma das casas algumas pessoas em volta de um tear. Fomos chegando envergonhados e eles nos chamaram. Bateu um interesse mútuo entre nós, e Sacha tentava ser o interprete porque eles mal falavam russo também. Eram kazakhs, morenos com feições totalmente chinesas.
A base do tear era o chão. Fios coloridos de lã se estendiam por uns 10m. Uma moça leve e ágil sentava sobre uma parte já pronta do tecido artesanal e executava o trabalho meticuloso da criação do padrão, fio por fio. Ficamos fascinados pelo seu trabalho.
Trocamos perguntas sobre o que, quando, como e onde. Perguntei seu nome, esticando papel e caneta e dizendo o nosso. Escreveu em cirílico, KАЛЖАН (Kaljan). Percebendo meu interesse, ofereceu para que eu operasse o tear. Foi legal.
Mesmo sem uma língua comum nos comunicamos ativamente, ofereceram chá (mas não aceitamos) e queríamos ficar mais mas já anoitecia. Fomos embora impressionados com a vitalidade, hospitalidade e simplicidade daquela gente.
Fogueira e Franceses Bêbados
Logo depois de voltarmos ao acampamento yurt chegou o ônibus dos franceses. Os mesmos que encontramos no aeroporto ao chegar em Tashkent, no hotel em Bokhoro, e em todos os pontos que paramos no meio do caminho. Eles também já nos reconheciam e era engraçado. Mas o silêncio do deserto terminou ali. Instalaram-se em seus yurts enquanto descansávamos no nosso.
Umas 19h fomos ao refeitório, nos cumprimentamos e sentamos em outra mesa com o Sacha. Salada russa, de beterraba, uma de beringela com cebola que foi a melhor até agora, outra de beringela com tomate e pão. Tudo com bastante óleo e nem sinal de folhas. Depois, uma boa sopa de repolho, e carne com batatas num molho bem saboroso. Para o vegetariano aqui trouxeram 3 claras de ovos fritas em bastante óleo. Comemos felizes. Perguntei ao Sacha cadê as gemas, que disse que muitos europeus preferiam assim. Bem, não sou europeu e não sei de onde tiraram que não queria a gema. Mas o Sacha também inventa as verdades dele…
Sacha abriu a garrafa de vodca uzbek para experimentarmos. Tinha um aroma forte, não encontrado nas vodcas no Brasil.
Os franceses terminaram suas garrafas de vodca e oferecemos a nossa, totalmente cheia. Celebraram, agradeceram e brindaram ao Brasil, à França, à vodca.
Sentamos em volta da fogueira onde BLABLA cantava e tocava seu ditur, instrumento de 2 cordas que parecia um pequeno alaude de braço muito comprido e fino. A julgar pelos seus traços totalmente chineses-mongois, ele era um kazakh e estava acompanhado pelo seu pequeno filho de uns 2 anos de idade que roubava boa parte da cena.
A noite no deserto é muito fria, todos se aproximavam da fogueira e não se preocupavam porque sabiam que dentro do yurt tudo se mantém bem aquecido.
A cantoria terminou eufórica e com danças. Depois de acabar (umas 22h), conversamos com os franceses sobre o islã, integralismo e viagens em geral. Alguns estavam bem altos graças a vodca
Chão de Estrelas
Apesar da noite estar bem iluminada por uma meia lua, dentro do yurt não se via um palmo a frente e precisamos usar o display da máquina fotográfica como se fosse uma fraca vela.
Dormir no yurt não é propriamente prático, mas é bem roots. Os futons eram deliciosos e davam uma boa sensação de volta às origens.
Eu (Tati) saí do yurt no meio da noite e vi o céu mais lindo de toda a minha vida. A lua se retirara e deixara vigilante uma imensidão de estrelas, incontáveis, serenas, donas de tudo. Parecia um sonho de tanta precisão e beleza. Nem um único espaço sem brilho no breu, que ficava ainda mais negro pelo contraste. Acho que eu também contaria histórias de Sherazade sob mil e uma noites como esta.
No meio da madrugada as areias do deserto são tão geladas quanto as águas de um rio de neve derretida. Caminhar nessa escuridão, com essa vista e no absoluto silêncio, faz acreditar que pousamos na lua e saímos para explorá-la. Infestado de vida, o deserto é também inspirador e cheio de poesia.
Acordamos umas 8 e pouco e chegamos no café às 8:50. Era o mais completo café da manhã até agora, com os figos mais doces que já comi, escuros por fora e amarelos por dentro, outras frutas, muitos pães, queijos e frios, panquecas, omeletes, umas 30 geléias de todas as cores mas sem nenhuma legenda, sucos, etc. Mas pena que mal deu para saborear pois às 8:58 começaram a tirar tudo implacavelmente. Corri para reclamar e mostrar que ainda estávamos lá, mas não adiantou. Regra é regra nesses resquícios de burocracia soviética.
Apesar disso, comemos bem, embora correndo para pegar as coisas antes que os funcionários as tirassem. Na saída reclamei com um funcionário que parecia mais sênior. Com uma cara de que já vou tarde me mostrou a placa com o horário do café: 7 às 9.
Encontramos o guia: Aziz, um jovem tadjik de Bukhara. O santo não bateu. Ele parecia não conhecer nada senão o blablabla decorado da visita (tele)guiada, não parecia gostar de nenhuma surpresa ou saída do esquema e não respondia direito nenhuma pergunta sobre a vida cotidiana. Pior: só direcionava atenção para as lojinhas e técnicas de artesanato. Além do mais, não tinha nenhum senso de humor e falava o ano ou século, irritantemente, de todos os monumentos. Um robô turístico. As cores de sua roupa eram um bom símbolo de sua personalidade: calça bege, camisa bege, sapato bege.
E apesar de Aziz, Bukhara brilha. Madrassas enormes, lindas mesquitas e belas praças com chafarizes. A cidade é antiqüíssima mas foi destruída diversas vezes sendo a mais letal a passagem de Genghis Khan. Por isso poucos monumentos tem mais de 1000 anos e a maioria foi erguida a partir do século XV.
Começamos por uma praça com o pequeno mausoléu de Ismail Samani cujos tijolos colocados em diversos ângulos específicos formavam a decoração inteligente. Na hora que estivemos lá, o sol entrava pelas frestas e rasgava o ar com raios brancos.
No mesmo complexo havia também a Fonte de Jó onde o próprio Jó da Bíblia teria batido o cajado e feito brotar uma água límpida e cristalina que está lá até hoje. O governo aproveitou e fez lá um museu da água, que mostra os trabalhos de irrigação e os carregadores de água, profissão reputada desde o século passado. Podia-se ver ao longe o que restou da Fortaleza de Emir.
A Casa do Noivo
Andamos por uma rua adjacente e Aziz ofereceu conhecermos uma casa típica de um bukhariano. Isso foi realmente espontâneo da parte dele e gostamos.
Pediu licença e permissão, e foi entrando. Era uma casa relativamente grande, de um cidadão abastado, com um jardim de rosas interno e uma edícula que iria servir para seu filho morar com a futura esposa. Conhecemos o proprietário e o noivo, mas não entramos na sala nem nos aposentos. A decoração não batia muito com os nossos gostos.
As Árvores Milenares e o Ninho da Garça
Aziz nos mostrou uma casa de banhos feminina do século XVI, que segundo a Tati cheirava bem, e outra masculina, que cheirava a muito mofo.
Almoçamos na beira do Lyab-i Hauz, um dos antigos reservatórios de água da cidade que hoje tem um papel decorativo na cidade. Em sua beirada haviam árvores retorcidas com sinalização de que eram de 1470, século XIII.
Todos os turistas almoçam lá e encontramos o primeira e único grupo de brasileiros ali. Era uma coisa tão rara que ao ouvir português simplesmente chegávamos para conversar.
Zanzamos por mais ruas com mesquitas, monumentos, madrassas e minaretes que sempre estavam forradas de lojas com vendedores agressivos. No topo de uma delas havia um gigantesco e impressionante ninho de garça, pássaro popular naquelas freguesias.
Entramos numa fábrica de tapetes onde mulheres tímidas e peludas trabalhavam todas as fases da confecção. Usavam fios de seda e era um trabalho interessante de ver sendo executado.
No final do dia, já não agüentávamos mais olhar trequinhos e técnicas e tecidos e tesouras e dizer “não, obrigado” para todos os vendedores e artesãos. Este último ponto não é exatamente culpa de Aziz. Praticamente todos os monumentos foram loteados em centenas de lojinhas que vendem basicamente as mesmas coisas. Visitar qualquer monumento significa ingressar num shopping cujas vitrines é a própria calçada.
Dança, Moda, Compras e Internet
Umas 17h fomos para o hotel. Sacha agitou um show-jantar para nós mais tarde, e fomos descansar um pouco.
Umas 18:30 ele nos pegou novamente e levou a uma ex-madrassa em Lyab-i Hauz. Toda a praça interna foi recheada de mesas e cadeiras para um show de música, dança e moda uzbeke. As mesas já estavam postas com o tradicional chá, saladas, pães e somsas. Achamos que o jantar era só aquilo então mandamos ver. Mas depois veio sopa e um prato principal. Sacha cuidou para que me servissem coisas vegetarianas e deu certo.
O show era bem bonito, com muitas dançarinas e intercalavam uma dança com um desfile de moda uzbeke. Eu achei o desfile legal, mas a Tati achou a coreografia das modelos um pouco brega. As roupas eram interessantes.
Pena que nos deram uma mesa um pouco distante. Gostaria de ver mais de perto a dança e os instrumentos que tocavam, mas privilegiavam grupos maiores para sentarem mais próximos do palco. Foi uma apresentação bonita e junto com o jantar tinha o preço fixo de $10 por pessoa.
Não precisa dizer que o lugar era envolvido por lojas que já havíamos visitado de dia, já conhecíamos os preços e produtos, e já sabíamos o que iríamos comprar. Depois de muita pechincha, mas muita pechincha mesmo, compramos véus sedas, bordados e lindas capas de travesseiros decoradas com bordados de seda de cores intensas.
Acordamos às 7h, fechamos as malas e fomos para o buffet matinal do hotel de Khiva. Melancia, melão diferente e bom, outras frutas, sucos prontos, ovo estrelado, uma panqueca adocicada de ricota que ficava melhor ainda com um pouco de mel e umas massas doces fritas, além de frios e queijos que não tocamos.
Às 9 nos encontramos com Sacha na recepção. Ele fala exatamente como o russo do filme Tudo é Iluminado. Uma de suas pérolas: “I recommendation to you”. Ou cantar “happy birthday to you” para o cão que recebeu todos os restos do almoço mais tarde. Ou gritar “spaghetti” quando tocou Enzo Ramazzotti no rádio. Ou ainda “next you are civilizatsya” para indicar que chegaremos em lugares mais civilizados em breve. Mas nada se compara a quando perguntei se a usina a vista era de energia nuclear e ele respondeu “this in atom Uzbekistan no”.
Paisagens do Deserto
Caímos na estrada. Dessa vez dei uma olhada melhor em Urgench. É uma típica cidade de interior mas tem ruas e calçadas largas muito arborizadas, tanto que mal se percebe os postes e fios elétricos externos.
Na periferia de Urgench havia muitas plantações de algodão e era época de colheita. Sacha contou que quem trabalha na colheita recebe 300 sum por quilograma, e uma pessoa colhe ± 10kg por dia. Mais tarde paramos para ver a colheita e pesagem e atualizamos o valor para 50 sum. No mercado internacional a tonelada de algodão vale 400 USD, segundo Sacha.
Atravessamos o rio Amu Darya a pé sobre uma ponte de metal totalmente remendada. Havia trabalhadores constantemente consertando a ponte. Sacha passou de carro, só fomos a pé porque é legal. Esse rio divide o território Khorezm do Karakalpak e havia um posto policial ali, quase como se fosse uma fronteira entre países.
O deserto é lindo. Paramos em alguns pontos altos para ver o rio de longe. Estávamos na época das secas o que fazia o rio ficar pequeno, mas pelas margens era possível entender o colosso que é por volta de março, época das chuvas e degelo.
Apesar da aparência árida, não havia 1 m² sequer sem um arbusto de no máximo 1.5m de altura. Na estrada estávamos constantemente quase atropelando pássaros que pousavam e levantavam vôo. Vimos também alguns pequenos animais irreconhecíveis cruzando a pista. Ou seja, como todos os cantos desse planeta, esse deserto era o seio fértil de fauna e flora ricas e próprias.
Paramos para almoçar numa casa de chá no meio do nada. Imagine parar para comer numa estrada deserta no interior do Piauí. Deve ser parecido. A idéia era comer peixe do rio. Desceram um pão que estaríamos com sorte se fosse da semana passada e um molho de tomate pronto como entrada. Depois veio um pratão com postinhas de peixe frito. Comemos com as mãos e estava bem bom. 9500 sum para nós três incluindo chá, biscoitos, balas e moscas.
Ao longo de toda a estrada desértica, seja perto de alguma casa de chá ou no umbigo de um grande nada, havia incontáveis garrafas de plástico jogadas. Deduzimos que os carros passavam ali e as pessoas lançavam seus lixos imperecíveis aleatoriamente. Como aquilo não se dissolve espontaneamente, ao longo dos anos as garrafas se somavam aos milhares. Uma pequena marca na visão do deserto mas um profundo arranhão na ética dessa civilização.
O Algodão e Uma Breve Bukhara
Já perto de Bukhara, vimos a colheita e transporte do algodão. Paramos para umas fotos e Sacha puxou uma prosa com eles. Um deles veio nos dar um punhado de algodão mas mostrei que já tínhamos de outro pomar. Sua primeira ação foi pegar um de nossos chumaços e contar o número de sementes. Pelo jeito isso define a qualidade do algodão porque é da semente que se extrai o óleo, usado na culinária etc. Nunca tinha pensado nisso.
Chegamos umas 17:30 em Bukhara e saímos às 9:00 de Khiva. O hotel é do tipo luxuoso-dos-anos-70. No guia diz que ele é um marco da Bukhara soviética. É meio longe da cidade, as coisas não funcionam direito e cobram 5000 sum por hora de Internet. Uma calamidade de caro comparado a outros lugares.
Despedimos de Sacha, subimos ao quarto e cogitamos dar um mergulho na piscina mas estava em reforma. Então fomos bater perna e acabamos chegando na cidade velha, com suas casas baixas e muitas lojas para turistas.
Descobrimos um pequeno hotel-boutique num bairro que não era dos melhores mas ficava mais próximo do centro que o nosso soviético Palace. O recepcionista era muito simpático e eficiente. Mostrou um quarto que era realmente charmoso, saleta secular preservada, onde se comia etc. Perguntou do Brasil e detalhes de futebol que realmente não sabíamos responder. Não conte para ninguém mas o preço era $50 por noite e realmente valia a pena.
Jantar e Internet no Interior do Uzbequistão
Já anoitecia, a fome batia e voltamos ao hotel. Decidimos ir jantar direto no Pelican Cafe, indicado pelo Sacha e uns 800m do hotel. Era uma lanchonete decorada como americana, passava clipes americanos na TV e tinha uma freqüência jovem. Mandamos uma sopa solianka para a Tati e um spaghetti com vegetais para mim. E depois um sorvete com frutas. 7000 sum.
Na volta paramos numa LAN house e por 800 sum por hora acessamos a Internet por linha discada. Foi irritante (porque já não estamos mais acostumados) mas funcional.
Eh assim que se escreve o nome do pais que eh muito diferente do nosso.
A coisa mais incrivel eh a etnia das pessoas, ou melhor dizer, a salada etnica delas. Eh russo loiro misturado com mongol e tartaro ouvindo musica americana na MTV. Nunca se perguntaram por que o negocio se “salada russa”? Poizeh, entendemos.
Estamos em Bukhara, chegamos hoje depois de viajar o dia todo pelo deserto, que eh sempre lindo.
Ja passamos por Tashkent que eh bem bonita e arborizada, e Khiva que eh uma cidade-museu. Tashkent tem um ar europeu com edificios stalinistas enormes, avenidas larguissimas e gente bonita.
A comida eh meio turca, meio arabe, meio carneiro e meio oleo. Daqui a 2 dias vamos chegar em Samarkand onde disseram ter o melhor sorvete do pais, ai minha dieta vai se equilibrar 😀
As coisas sao muito baratas. Se a gente se livrasse dessa nossa cara de turista, ia ser mais ainda.
Perdemos o café felizes porque dormimos até tarde. Mas deram um jeito para nos servir umas 11:15. A Tati queria ver mais algumas coisas em Khiva e lá fomos nós.
Certa hora deu fome e fomos conhecer o bazar que ficava na parte de fora da cidade. Já tinham desmontado tudo mas vimos um lugar simplório que tinha um placa indicando ser uma casa de chá. Não era um lugar nem uma zona turística.
Havia uma moça extremamente bonita parada na porta e fomos entrando. Não havia ninguém comendo provavelmente por causa do horário. Quebramos os dentes para nos comunicar num esforço hercúleo de ambas as partes, até que a dona entendeu que queríamos ver o que ela tinha na cozinha. “Salat”, “nan” e “tchai” foram as únicas palavras que ambos entendemos. O resto que ela mostrou não nos interessou. Então acabamos comendo um pão caseiro bem bom, salada de tomate com cebola e coentro e chá verde.
Enquanto comíamos eles não paravam de nos olhar e coxixar de longe. Certa altura chamei alguém e vieram todos, a família toda com todas as crianças. Pedi que sentassem, principalmente a menina da porta que tinha realmente uma beleza e sorriso surpreendentes.
Nos divertimos tentando nos comunicar mas foi extremamente difícil. Com ajuda de papel e caneta descobrimos o nome e idade de cada um. A menina bonita parecia estar nos convidando para jantar em sua casa, mas foi tão confuso que pareceu improvável. Então tiramos um monte de fotos, e descobrimos que não eram uma família e que as duas moças só trabalhavam lá.
Nessas alturas a dona estava bêbada, começou a falar sem parar, não entendemos nada e para fechar a matraca dela pagamos com a mesma moeda: comecei a falar coisas aleatórias em português. Funcionou.
Cena surreal: meteram uma música e nos chamaram para dançar. Uma menininha tirou um monte de fotos.
A dona estava bem bêbada e ficava tentando agarrar todo mundo (Tati e Avi) falando “i love you”.
Começamos o ritual de despedidas e as moças pediram para que lhes enviássemos as fotos. Estiquei uma caneta e falei as palavras mágicas “e-mail” e “internet”. Elas disseram calmamente “no no, no internet”. Fiquei alguns segundos perdido pensando como iria enfrentar esse desafio enquanto elas escreviam seu endereço num papel. Fiquei mais calmo quando lembrei que existia uma coisa chamada correio físico e agora só faltava descobrir como usá-lo.
A conta saiu 1000 sum o que nos revelou o verdadeiro Uzbekistan — literalmente de 5 a 10 vezes mais barato comparado ao já barato circuito turístico.
Outras Aventuras em Khiva
Fomos nos aventurar por partes mais externas da cidade e descobrimos uma tal academia de ciências, mas o homem na porta ou não nos deixou entrar ou disse que estava fechado, ou não foi com nossa cara.
Voltamos para a muralha e achamos uma rampa para subir nela. Vimos a cidade do alto quando o sol já estava mais baixo.
Atravessamos para voltar ao hotel e no caminho tentamos descarregar a câmera para um CD. Cobraram 5000 sum, mais caro que a turística Jerusalém. Não topamos.
Jantar em Khiva
No hotel tomamos banho e esperamos a fome bater enquanto relembrávamos o dia. E ela bateu violentamente, o que nos arrancou do quarto em direção ao Farouk, restaurante bonitinho e a céu aberto que tínhamos visto de dia.
Não havia praticamente ninguém às 20:00 e começou o ritual de explicar que não comia carne e selecionar as opções. Mandamos ver uma salada oleosa mas boa de beringela, pão fresco, 2 tigelas de lakhman (lámen) e umas fatias de melancia. O lakhman estava bom, mas o serviço não: traziam só 1 guardanapo que tínhamos que dividir e precisei ir até a cozinha para conseguir sal e pedir a conta. Saiu 10100 sum incluindo o serviço, valor que tínhamos aprendido ser altíssimo para o interior do país.
Voltamos ao hotel, usamos o computador para transferir fotos para o pen drive da Tati. Internet nem pensar, era por linha discada, 33.6kbps, e não estava conectando. E fomos dormir.
Acordamos às 5h, fechamos as malas, comemos pouco, rápido e praticamente de pé e nos encontramos com o Sergey às 5:35.
Levou-nos ao aeroporto que era num prédio diferente e mais moderno que e o internacional.
Fizemos check in observando muitas pessoas tentando furar fila. O cartão de embarque era escrito a mão. Depois do raio-X respiramos o ar pesado da sala de espera devido aos fumante ansiosos que haviam lá.
A Tati cochilou no vôo, e eu não.
Urgench parecia um aeroporto desolado e saímos do avião a pé direto para o estacionamento de carros. As malas são entregues ali mesmo diretamente do carrinho que vinha do avião.
Encontramos o Sacha, nosso motorista de feições russas e dentes de ouro (só os 2 de baixo, e os outro era muito estragados) para os próximos dias. Seu inglês nota 3.5 não intimidava sua comunicação e falava sem parar. Era engraçado.
Tentei dormir um pouco esticado na van durante os 30km para Khiva, sem sucesso.
O hotel Malika (que significa rainha em uzbek, mas a Tatiana ficava fazendo trocadilhos do tipo “malika sem alçika”) ficava em frente a entrada da muralha da cidade antiga. Na recepção encontramos Timur, nosso jovem guia de 23 anos, com quem combinamos adiar para as 13h o passeio, para tentarmos dormir um pouco. Era 9:30.
Antes entramos pelo muro na cidade velha para um chá. Encontramos o Sacha no bar que pediu um café na nossa mesa e não pagou (provavelmente ficou escondido na nossa conta). Então tentou nos convencer em almoçar mais tarde nesse restaurante, tanto que pareceu que iria tirar vantagem. De qualquer forma era muito cedo para pensar nisso, não topamos e voltamos para o hotel.
Tati chapou, eu não. Só fiquei com dor de cabeça.
Timur e sua Khiva Khorezm
Às 13h nos encontramos com Timur no saguão e fomos caminhando até um restaurante que a Tati viu no guia (Zarafshan). Era aconchegante e sentamos num tipo de cama gigante com uma mezinha mais alta no meio. Timur nos ajudou com o cardápio, pedi 3 saladas e a Tati mandou ver um manti que parece um guioza no vapor.
Timur disse que já tinha comido mas comeu também. Tudo bem, porque foi bombardeado por perguntas sócio-político-étnico-econômico-religiosas e foi uma conversa legal. A conta deu uns 9500 sum.
Começamos então um longo city tour a pé, que durou 5 horas de longa conversa e histórias de Timur. Percorremos os principais monumentos e pequenas ruas empoeiradas e marrons de Khiva. O monumentos eram decorados com azulejos azuis (alma), verdes (islã) e brancos (paz).
Um lugar interessante foi a mesquita Juma Masjid com seus muitos pilares de madeira trabalhada. Um deles foi feito na Índia como premio pela vitória de um “Hércules” khorezm no campeonato mundial de luta. Continha divindades indianas escondidas em seus detalhes. Os Khorezm são uma minoria que vivem nessa região. Quando a Rússia definiu as fronteiras, seu território ficou dividido entre o Uzbekistan e o Turkmenistan.
Nesse lugar conversamos sobre religião e contei emocionado sobre o episódio da reza no deserto da Jordânia.
Em algum lugar Timur mostrou um poço de água a moda antiga. Pode-se encontrá-los em várias partes da cidade e essa água subterrânea é o que deu origem a Khiva. Ele puxou um balde de água que era limpíssima e bem fria. Eu a provei e tinha gosto mineral.
Às 17h fomos assistir um show khorezm típico numa casa de chá. Eu dancei junto e foi muito interessante.
Uma menina que tocava acordeon no grupo era lindíssima e perguntamos sobre ela ao Timur, por que não namorava ela etc. Ele contou que ser músico em Khiva era um tipo de subemprego, a posição social dela era complicada e isso dificultava as coisas.
Compramos ali umas sedas artesanais feitas a mão, depois da tradicional pechincha. E no caminho para o hotel Timur nos levou para outras lojas onde havia CDs e VCDs de dança. Não compramos mais nada.
Jantar com Intercâmbio Cultural Portátil e Digital
Num Bed-and-Breakfast perto da saída da cidade Timur combinou um jantar para nós pois era alto e tinha vista. Iríamos voltar lá às 20:30.
Acompanhou-nos até o hotel, cochilamos forte no quarto e tomamos um banho de pouca água, o que nos atrasou para o encontro com Timur às 20:20 no saguão.
Chegamos no restaurante atrasados e o proprietário reclamou! Serviram as saladas, um pão não fresco, uns pasteis de carne e de batata que tinham sido fritos horas atrás, chá, água e amendoim doce, uvas passa, peras e maçãs para sobremesa por 5000 sum por pessoa. Timur, nosso guia simpático, disse que só ia nos acompanhar mas filou novamente. Cobraram 10000 sum como que só para 2 pessoas.
Ao longo do dia fizemos um intercâmbio turístico, histórico e cultural. Mas agora era hora do intercâmbio digital. Bluetooth ativado em nossos Nokias e lá estávamos a trocar MP3s de nossos países. Timur recebeu Sa Grama, Pau Brasil, Titane, João Gilberto, Sa & Guarabyra e Paco de Lucia. Faltou Ulisses Rocha, Zé da Velha e outros mas ele não tinha mais memória. E eu recebi alguns MP3 khorezm e fotos. É assim que tecnologia derruba fronteiras.
Voltamos felizes para o hotel e dormimos profundamente até às 10:30 do dia seguinte.
O café no hotel tinha pães típicos um pouco secos, peras, maçãs, frutas secas, tomate e pepino frescos, um queijo branco e outro amarelo que eram bastante mixurucas, frios, uvas, sucos de maçã e outra fruta que não soubemos identificar mas que tinham um sabor diferente e bom, cereais simples, leite, iogurte, coisas que estavam entre compotas e geléias de diversas frutas, croquetes fritos de frango e carne, panquequinhas recheadas de carne, arroz cozido no leite que não era doce e rabanada que também não era doce. Haviam ovos expostos provavelmente indicando que poderiam ser requisitados. O café em si era dissolvido em água quente mas havia uma máquina de expresso lá. Foi uma refeição suficientemente boa.
Vimos o carro do Sergey lá fora e fomos atrás dele. Aí apareceu a Natascha, nossa guia, e nos cumprimentou. Seu inglês era compatível com o nosso. Ela era filha de russos mas nasceu e viveu em Tashkent a vida toda.
Levaram-nos primeiro a um belo jardim chamado Victory Park na beira do rio Bozsu, de águas verdes e rápidas. Havia um memorial à independência de 1991 e um museuzinho que não entramos.
Obviamente bombardeamos ela com perguntas sócio-político-étnico-econômico-religiosas, e perguntamos como soa a língua uzbek. Ela foi atrás de umas senhoras com traços mais ou menos tártaros que passeavam por lá e pediu para abrirem a boca. E elas falaram frases simples mostrando seus inúmeros dentes de ouro. Foi o momento mais alto do dia até aquela hora.
Perto do jardim ficava a monumental antena de TV cuja arquitetura continha um tripé de tamanho colossal. Parecia um míssil pronto para ser lançado.
Depois fomos a um monumento tocante no epicentro do terremoto de 1966 que consistia do chão rachado e uma família parando o terremoto com um gesto sereno. Escultura monumental stalinista, mas bela.
Atravessamos um rio que era a divisa entre a cidade nova onde estávamos, e a velha, para onde íamos.
Tashkent Antiga e o Primeiro Corão
Fomos a um complexo de edifícios renovados de arquitetura islâmica típica do Uzbekistan. Fica na parte antiga da cidade, pois Tashkent sempre foi um lugar de passagem e troca de mercadorias. Além das ruas labirínticas de terra batida do século XVI, visitamos a madrassa e mesquita renovadas após a independência (e a retomada da fé islâmica).
Um dos edifícios continha exposto a Corão mais antigo que existe, escrito poucos anos após a morte de Maomé. Trata-se de um livro enorme com páginas papel de seda de ± 1m². Cada página continha umas poucas frases escritas em caligrafia grossa, grande e bem espaçada. Era proibido fotografar e tivemos que tirar os sapatos para chegar perto.
Andamos pelo bairro antigo, onde todas as casas são cercadas por grandes muros para que o pessoal de fora não soubesse a situação econômica de seu dono. Cada casa esconde um pequeno quintal com árvores frutíferas que pode revelar uma pequena jóia.
Natascha contou sobre os rituais de casamento, a proteção dos mais velhos, a mudança dos tempos e o fim do comunismo.
Bazar, Almoço e Outros Pontos Turísticos
Fomos para o bazar que parece a Feira do Ver o Peso de Belém. Era muito grande. Havia partes abertas que vendiam frutas e legumes, sapatos, roupas, temperos, e uma construção redonda muito interessante onde se vendia nozes, frutas secas, queijos (todos iguais e azedos), picles de vários tipos, conservas, legumes pré-fatiados-na-hora, condimentos, em 2 andares. Todos os bazares tem 2 andares: um para comidas, outra para roupas e outras coisitas. Por exemplo, 1kg de castanha de caju custava, sem pechinchar, 13000 sum ou $10, ou R$20, um pouco mais barato que no Brasil, terra do caju.
De lá fomos para uma antiga madrassa que foi transformada em um centro de artesanato onde artesãos mantinham seus estúdios e lojinhas. Todos faziam exatamente as mesmas coisas: caixinhas pintadas da forma tradicional, pinturas islâmicas simétricas de grande precisão e detalhe, e também os mesmos temas em papel de seda ou papiro antigo. Era lindo mas encheu o saco ver tantos artesãos fazerem a mesma coisa com diferenças somente técnicas.
Então fomos almoçar no Credo, restaurante estranhinho indicado pelo Sergey. Mesmo sendo domingo, estava praticamente vazio. Comemos umas saladas, carneiro e uma pizza frita de cheiro verde e um queijo meio estranho. Sorvete com nozes no final e chá verde com limão que parece o refrigerante Feel Good do Brasil.
Fomos ao pequeno museu de artes aplicadas na parte nova da cidade já com muito sono. Vimos sedas, tapetes, roupas tradicionais, madeira esculpida, cerâmica, instrumentos musicais, jóias, etc. A casa era do diplomata Alexandrovich Polovtsev em 1907 e havia pertencido a algum judeu que a reformou com inserindo alguns temas judaicos como Estrelas de David.
Jantar Turco
Fomos para o hotel umas 17h e chapamos até umas 19h.
Acordamos e decidimos jantar no Istambul, atravessando a rua do hotel, um turco que a Natascha indicou. Antes de chegar lá demos uma volta numa praça com lago e chafarizes e bares de espeto e de bêbados em volta.
No Istambul foi divertido pedir comida. Turcos fumantes se amontoavam para assistir um jogo de futebol na TV. Mandamos ver um prato de vagens, salada de pepino e tomate, e pepino com iogurte (a minha receita é melhor), acompanhado de um pão perigosamente gostoso. A sobremesa foi um preparado de semolina com nozes que minha mãe também sabe fazer.
Voltamos para o hotel pela passagem do metrô e demos uma espiada.
Já no quarto percebemos como fedíamos a cigarro. Fizemos parcialmente as malas e tentamos dormir. A Tati obviamente conseguiu, mas eu não por causa da soneca da tarde. Passei a noite em claro e sofri no dia seguinte.
Na imigração havia 4 guichês e nenhuma coordenação de ordem. As pessoas simplesmente se amontoavam para serem atendidas, sem fila nenhuma. Nunca vi isso.
Precisávamos tirar visto mas ninguém nos atendia. Esperamos mais de uma hora até todos terem o passaporte carimbado.
As vezes passavam policiais fardados do aeroporto sempre com carimbos pendurados na cintura ao invés de armas. Era engraçado.
Um cara de crachá apareceu e falou a palavra mágica: “visa”. Foi o suficiente para darmos nosso passaporte. Falou para esperarmos aí e desapareceu na multidão. Bateu medo, arrependimento e frio na barriga. Não podíamos ter dado o passaporte tão levianamente.
Outro cara voltou 10 infinitos minutos depois com os passaportes com visto e cobrou $60 por cada um.
Carimbamos os passaportes, pegamos as malas e nos juntamos a multidão quase inerte que precisava passar pela alfândega, também sem nenhuma ordem de fila.
Passamos pela alfândega e saímos para a parte externa do aeroporto que parecia o de Ilheus, Bahia. A Tati sentia cheiro de cravo. Pousamos às 7h, saímos do aeroporto às 10h. Bem eficiente.
A Moeda Engraçada
Encontramos com o Sergey que nos levou ao Hotel Uzbekistan (mapa). Ele falava pouquíssimo inglês mas era simpático.
A primeira impressão da cidade lembrou as capitais do norte como Belém, com suas árvores gigantes.
O hotel tem porte stalinista mas a fachada é inteira rendada lembrando temas islâmicos.
O carregador tinha pele literalmente rosa com olhos muito claros e as recepcionistas totalmente orientais, muito simpáticas, falavam inglês e atravessamos o grande saguão para falar com elas.
Fizemos check in, subimos, tomamos banho e dormimos das 11 às 14:30. O quarto era enorme, a cama também.
Fomos trocar dinheiro no hotel mesmo. $1=1274 sum. Mas a maior nota é de 1000 sum e ao trocar $100(=127400 sum) saímos com um incômodo bolo de 15cm de altura em notas. A maior cédula do país, de 1000 sum, comprava uma garrafa de água de 2 litros no hotel. É como se a maior cédula no Brasil fosse de R$5, talvez até menor.
Tashkent Soviética e a Primeira Refeição
Saímos para andar. Ruas e edifícios enormes, arquitetura monumental, parece Brasília com um toque de Stalin e um pezinho no oriente.
Andamos por uma rua muito larga com árvores enormes e um parque em um de seus lados. Havia uma estátua de Amir Timur, herói nacional do século XIV.
Entramos num lugar chamado Mir Burger, anexo ao Mir Stores — um tipo de supermercado com pequeno shopping no andar de cima, onde compramos pasta de dente — mas além de sandwiches haviam outros tipos de comida.
No andar de baixo havia o tal Restaurante Anatólia e pudemos montar pratos com vagens, feijão, espinafre com arroz e bolinho de carne com batata. Era gostosinho e lembrava a comida búlgara — ½ eslava, ½ turca — de minha mãe.
Uma avenida dava em um tipo de Esplanada dos Ministérios com avenidas, calçadas e jardins larguíssimos e bem cuidados. Conseguimos ler o nome do Ministério das Finanças em alfabeto cirílico. A segunda coisa que conseguimos ler foi СИМРСОНС (Simpsons, propaganda do filme).
Zanzamos por lá admirados com a arquitetura de coisas gigantes e principalmente com a variedade étnica e cultural das pessoas. Era mais interessante fotografá-las do que as paisagens. E seu temperamento muda tanto quanto seus traços: alguns são solícitos e simpáticos, outros são rudes, desinteressados ou desdenhosos. Ou pode ser só choque cultural mesmo…
Pode-se identificar as etnias pelas roupa (quem conhece). há chapéus quadradinhos, chapéus redondos, chapéus mais muçulmanos ou mais chineses. Para as mulheres, vestidos em geral longos e brilhantes, como se fossem a Scarlett Ohara com vestido do sofá da vovó. Mas tem aquelas moderninhas que se vestem com jeans ou micro saias, sempre cheios de brilhos. Aquele amor oriental por tudo que brilha, porque mesmo o que não é ouro, reluz.
A Tati ainda dormia de pé e fomos voltando para o hotel ao anoitecer.
Paramos para um café ruim num lugar na praça que parecia um coreto de nossas cidades do interior: totalmente aberto, alto e com tudo de mármore.
E lá perto havia uma feira de quadros como o da antiga Praça da República. Mas as pinturas em geral eram bastante bregas.
Jantar Típico e “Caro”
Descansamos um pouco no hotel, assistimos Fashion TV, tomamos outro banho e pedimos sugestões de restaurantes típicos.
Escolhemos o Caravan porque disseram ser típico e com música típica ao vivo, mas precisaríamos de um táxi.
3000 sum depois, o taxista do hotel nos deixou lá, numa rua de bairro larguíssima e que ele fez questão de lembrar que sediava o consulado de Israel.
O restaurante era bem decorado com antiguidades e tinha vários recintos, alguns com mesas com sofás aconchegantes. Sentamos na parte de fora perto da música ao vivo que não era tradicional coisa nenhuma. Jazz meio vagabundo e tocaram até Pantera Cor de Rosa.
Para um sábado a noite, o restaurante estava bastante vazio, e havia mesas só com mulheres um tanto vulgares.
Depois ficamos sabendo que o lugar era considerado muito caro. 2 cumbucas de saladas boa e outra ruim, 1 chá gelado com berries, 1 pão tradicional, 1 somsa de espinafre (bureka com massa gorda) e 2 sobremesas (prato de frutas secas e maçã assada com pistache) saiu por 21000 sum, ou menos de $20.
Ligamos para o taxista Sunat vir nos buscar e voltamos para o hotel quase meia noite.
When I tell this to people their first reaction is always “WTF are going to do there?”. Well, I try to reroute this question to my girlfriend, because I am still not sure. I even don’t know how she convinced me to do this trip. But with her company everything will be a pleasure.
I’ll try to blog the most I can from there, but I guess this region and some parts of Africa are the most remote locations in the world, so I can’t promise any single post.